Alberto sempre fora distraído – na escola, na faculdade, no serviço militar, na empresa, em casa. Esquecia-se das aulas, perdia comboios e a espingarda, saltava compromissos e prazos de relatórios. Salvava-o a Francine, uma secretária dedicada e atenta cuja mente funcionava como um lembrete de agenda electrónica.
Paralelamente a esta característica desenvolvera um fetiche: o sexo angariado através dos anúncios dos jornais. Alberto, não sendo vaidoso, gabava-se, no entanto, de um controlo de qualidade preventivo sem falhas. Conhecia os verdadeiros atributos das raparigas através do fraseado do anúncio, sabia onde lhe venderiam gato por lebre, reconhecia virtuosismos escondidos atrás de palavras simples e aparentemente transparentes, conhecia os códigos de texto que revelavam fantasias de ir ao céu.
A noite tinha-se posto mansa e quente naquele Agosto lisboeta. Alberto tinha consultado os jornais e na véspera, com uma lua cheia que lhe entrava pela sala dentro, decidira contratar a Heloísa, uma moçambicana licenciada em relações internacionais há pouco mais de seis meses, com um livro de recibos verdes com uma virgindade que ela já não tinha e o nome inscrito no centro de emprego. Chamara-lhe à atenção a fotografia sensual, ligeiramente diferente das habituais que prenunciavam um erotismo barato regado a espumante à temperatura ambiente.
Alberto convidara-a a entrar e, como era costume, oferecera uma taça de champanhe, que Heloísa, no seu corpo bem tratado de mulher de vinte e poucos anos, aceitara de bom grado. Passava pouco das dez da noite quando ambos se dirigiram para o quarto onde já ardiam velas, e se ouvia o som constante e gravado de uma fonte que brota água num murmúrio da natureza.
Trocaram um beijo longo e húmido, carregado daquela ansiedade de quem beija pela primeira vez uma mulher desconhecida, porque a Alberto não lhe afligia a natureza comercial do encontro. Era uma boca nova, uns lábios entreabertos que o recebiam com as cores de África, os sons de África, os ritmos de África, e isso era o bastante para lhe provocar um ligeiríssimo aumento da frequência a que batia o seu coração – uma batida baixa e compassada, porque Alberto tinha sido um maratonista promissor na agremiação desportiva onde crescera.
Alguns minutos depois, com a lentidão de quem deseja que o tempo se arraste na eternidade de uma noite, a camisa de Heloísa caía no chão. O ex-corredor ainda só estava nos dez mil metros e o fôlego não lhe faltaria. O resto da roupa que separava Alberto da nudez africana cairia a seguir, sem ruído, sem perturbação - e sem pressa. A segunda contraente daquela noite onde se trocaria prazer por notas estava agora nua, integralmente nua, e Alberto tinha passado os vinte e cinco mil metros. O aumento do ritmo cardíaco era pouquíssimo, tão diminuto que Heloísa não dera por isso. És um atleta, diria Alberto de si para si, como quem se motiva à passagem difícil dos trinta quilómetros.
Nas duas horas seguintes o casal manteve a mesma passada, porque o primeiro contraente assim o desejou. Tudo fluiu num vagar sensual e calmo, como um sol que beija o Índico enquanto se põe no fio do horizonte moçambicano. O maratonista chegava ao fim, repleto de um orgulho vencedor, pronto para dar uma última volta à pista antes de receber a coroa de flores de uma multidão ululante.
O que te pareceu, Heloísa? Gostarias de voltar outro dia?
A moçambicana olhou-o nos olhos, deixando que os dele percorressem o seu corpo à procura das memórias, dos vestígios, dos sons e dos cheiros.
Sabe Dr. Alberto... O senhor deve ser muito distraído. Não sei se percebeu no anúncio que eu sou masoquista – gosto de alguma violência, de gritos, de agitação. O meu gozo atinge-se na cólera, na ira de quem me contrata. Mas o senhor deve ser católico – e a ira é um pecado mortal, não é?
JdB
* publicado originalmente a 17 de Maio de 2010
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