Olhar para o peixinho
Estas são duas crianças a fazer festas a uma gata. Quando passa um carro a gata foge. E depois volta para retomar as marradinhas.
“Estúpida da gata!”, diz o miúdo, “sempre cheia de medo!”
A miúda não discorda mas diz: “Já viste? Deve ser horrível estar sempre cheia de medo.”
Não sei se foi [Paul] Valéry que disse que ser poeta é imaginar o que sente o peixe dentro do aquário: como vive e o que vê. É uma afirmação de autonomia, quase profissional: é isso que o pintor não consegue pintar.
Lembrei-me de Valéry – não é por parecer pretensioso que me vou pôr a disfarçar – porque há muitas maneiras de compreender o mundo e, por muito democráticos que queiramos ser, algumas são melhores do que outras, e merecem ser escolhidas por quem ainda não se decidiu.
A questão de a gata ser estúpida ou inteligente também é interessante, claro. É estúpida porque 99% das vezes não era preciso fugir? Ou é inteligente porque fugir, por tudo e mais alguma coisa, é uma boa estratégia para sobreviver?
Há pessoas que querem classificar e pessoas que querem compreender. Classificar é rápido e eficaz. Compreender é moroso e incerto. As primeiras querem saber “quem é ela? O que é que está a fazer?” e, mal recebem as respostas, passam logo a classificar o bicho: “É estúpida” ou “faz ela muito bem”. É assim com os gatos, com os vizinhos, com a política e com tudo. Mas compreender acaba por ser mais útil ainda, porque nós dispomos de tudo o que é preciso para tentarmos imaginar que somos outra pessoa, outro povo, outro bicho.
É arriscado, claro, e parcial também, porque só conseguimos fazer uma aproximação, mas é nessa tentativa de percebermos, nesses passos pequenos que damos para nos aproximarmos, que ganhamos uma proximidade que nos ajuda a compreender o outro.
A empatia sem imaginação é suspeita. A imaginação sem esforço e sem tempo, sem curiosidade ou perplexidade, não é imaginação: é só olhar. É o que faz a gata.
(Mas será?)
Miguel Esteves Cardoso, “Olhar para o peixinho”, Público, 19 Out. 2023
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