MARK TWAIN E A MÃE DE JESUS PARA A FESTA DOS REIS
No início da década de 70, o então Patriarca de Veneza, que veio a ser o Papa dos 33 dias antecedendo o polaco, costumava publicar no jornal ‘Messaggero di S. Antonio’ cartas póstumas aos seus autores preferidos. Mas tarde, foram reunidas na colectânea ‘Illustrissimi’ (i.e. «Aos Ilustres»).
Um dos destinatários das epístolas foi Mark Twain (pseudónimo literário de Samuel Clemens, 1835-1910), entre outros motivos, pela sua lição do triplo João. Trata-se da metáfora a respeito das diferentes percepções sobre cada ser humano, assim explicada pelo eclesiástico italiano: «quando era miúdo, eras um dos meus escritores favoritos. Ainda me lembro das ‘Aventuras de Tom Sawyer’, que eram as aventuras da nossa própria infância. Contei as tuas histórias centenas de vezes e uma delas para mostrar, por exemplo, o valor dos livros. Imagino que alguns dos meus diocesanos ficarão chocados, a dizer: ‘Então, um Bispo a citar Mark Twain!’ O reparo fazia sentido, por causa da animosidade do norte-americano contra a Igreja Católica. Mas curiosamente, a pessoa que mais admirava era Santa Joana d’Arc. Dedicou 12 anos a investigar a sua biografia, marcada por gestos de heroísmo extraordinários e sumamente originais, que culminaram numa injusta e cruel condenação à morte na fogueira. A publicação que escreveu sobre ela considerava o seu melhor trabalho literário: «Personal Reflections of Joan of Arc». Como assinou sob um novo pseudónimo, surpreendeu os seus leitores, quando perceberam de quem se tratava.
Voltando à carta dos anos 70: «Caro Twain, (…) Lembro-me que, uma vez, observaste: ‘Man is more complex than he seems. Every adult has in him not one but three distinct men. How is that? Well, take any man called John. In him there’s John the First, that is, the man he thinks he is; there’s John the Second, the man others think he is; and finally there’s John the Third, the man he really is.’ Quanta verdade nesta tua observação, caro Twain! Quando nos apresentam uma fotografia de grupo onde aparecemos, quem é a primeira figura que procuramos? Detesto ter de dizer que é a nossa imagem, porque prezamo-nos imensamente, bem acima dos outros. Também o segundo João se esforça por projectar uma imagem positiva de si e ressente-se quando não é admirado. O último João é, no fundo, aquele que Deus ama e que faz a vontade do Pai. Assim, se voltarem a meditar nos três Joões que há em cada um, prestem especial atenção ao terceiro, àquele que Deus ama». No fundo, é o único que existe.
Sobre a força do real: no ‘Samba em Prelúdio’ Vinicius de Moraes (1913-1980) parte de uma constatação sobre os limites da existência para depois lançar um convite invulgar: «Tenho os olhos cansados de olhar para o além, vem ver a vida.» Na mesma senda do brasileiro e do terceiro João de Twain, John Lennon também defendeu (em ‘Beautiful Boy’) a ligação essencial à vida, que nos escapa quando, inebriados connosco, perseguimos aléns estéreis, fabricados, cegando aos poucos. Formulou-a como alerta contra voluntarismos à margem e fechados à realidade: «Life is what happens to you while you're busy making other plans».
Porquê ignorar a realidade? Talvez dê uma pista lembrar que todos os tiranos se alhearam dela para impor um projecto, que se torna despótico e egocêntrico! Isto dá a dimensão do perigo da fuga à vida, à realidade, mesmo quando custa, sob pena de ficarmos à mercê de subjectivismos fantasistas (nossos incluídos), falhos de substância, de factualidade. Será uma questão de coragem, de lealdade com a existência? Pois nenhuma faltou ao Bebé, que quis nascer pobre, há 2000 anos. Mas só o Amor ilimitado por cada um O moveu e O faz querer (re)nascer para viver connosco e iluminar o nosso dia-a-dia. Basta escolhermos ‘ver a vida’, como cantam Vinicius e o Beatle.
Da noite de 24 de Dezembro até à festa da Epifania, já em Janeiro, celebramos o ousado acontecimento de um Deus que vem até nós para «se colocar, com confiança, nas nossas mãos. É como se dissesse: ‘Sei que o meu esplendor te assusta, que à vista da minha grandeza procuras impor-te a ti mesmo. Por isso, venho a ti como Bebé, para que me possas acolher e amar’.» [Bento XVI] Que espantoso paradoxo o expoente da grandiosidade revestir-se da maior fragilidade, para se aproximar de nós e dar sentido ao tempo presente.
Numa composição de Mark Lowry, o alcance da doação de Cristo à humanidade desfia-se numa sequência de interpelações a Maria, percebendo-se que só um Deus tornado homem permite elevar os homens a Deus:
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