22 fevereiro 2024

Da morte como oportunidade de promoção

No próximo Domingo fará anos que nasceu Cesário Verde (25 de Fevereiro de 1855 - 19 de Julho de 1886). Entre nascer, ser empregado de comércio e morrer, passar-se-iam uns escassos 31 anos. Numa carta dessa altura para o seu grande amigo Silva Pinto, diz-lhe Cesário:

O Dr. Sousa Martins perguntou-me qual era a minha ocupação habitual. Eu respondi-lhe naturalmente: empregado de comércio. Depois ele referiu-se à minha vida trabalhosa, que me distraía. Ora meu querido amigo o que te peço é que conversando com o Dr. Sousa Martins lhe dês a perceber que eu não sou o Sr. Verde, empregado de comércio. Eu não posso bem explicar-te, mas a tua amizade compreende os meus escrúpulos. Sim?  

Em O Livro do Desassossego, escreve Bernardo Soares:

Vivemos pela acção, isto é, pela vontade. Aos que não sabemos querer — sejamos génios ou mendigos — irmana-nos a impotência. De que me serve citar-me génio se resulto ajudante de guarda-livros? Quando Cesário Verde fez dizer ao médico que era, não o Sr. Verde empregado no comércio, mas o poeta Cesário Verde, usou de um daqueles verbalismos do orgulho inútil que suam o cheiro da vaidade. O que ele foi sempre, coitado, foi o Sr. Verde empregado no comércio. O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois de ele morrer que nasceu a apreciação do poeta.

Tal como digo no primeiro parágrafo, entre nascer, ser empregado de comércio e morrer passar-se-iam uns escassos 31 anos. Embora o Sr. Verde tenha escrito todos os versos antes do fatídico dia 19 de Julho de 1886, só depois de ter dito ao irmão não quero nada. Deixa-me dormir e ter exalado o último suspiro é que ele se transformou em Cesário Verde, o poeta de O Sentimento de um Ocidental. Ser-se empregado de comércio é comum; já ser-se poeta é singular. Foi preciso a morte - como para tanta gente, em tantos momentos e em tantos lugares - para que ele se alcandorasse e passasse de uma vulgaridade para um destaque. 

Se o mundo fosse imperfeitamente perfeito, ou permitisse todas as imaginações, talvez pudéssemos pensar que Cesário Verde, se tivesse vivido 100 anos, teria sido sempre, e fatalmente, o Sr. Verde. A morte salvou-o, porque o que ele queria era ser Cesário Verde

JdB    

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