15 fevereiro 2024

Do garbo e da desilusão

Roberta trabalhava para uma autarquia, ensinando aos visitantes os meandros das batalhas portuguesas - a estratégia, as causas e as consequências, os intervenientes, os pormenores curiosos que ninguém dominava, nomeadamente a variedade das viandas, o peso das bestas, a técnica de secagem das flechas, o índice de flexão dos arcos, a forma de satisfação de necessidades básicas para gente revestida a armadura. Sabia tudo e de tudo, com uma competência que não oferecia dúvidas mas, acima de tudo, com um entusiasmo vibrante, sonoro, contagioso. Para Roberta, falar das artes da guerra, do armamento, da distribuição das forças, da orografia, era um prazer inolvidável, que a desgastava fisicamente mas que lhe alimentava a alma.

Tinham passado 20 anos desde que tentara concorrer à Academia Militar. Fisicamente ágil, veloz mas resistente, boa aluna a tudo (uma ou outra dificuldade em visão do espaço, que colmatava com horas infindas de estudo) partiu para as provas de aferição com alegria e confiança. Saíra desgostosa, desanimada, com um sentimento de injustiça que nada - nem sequer um jantar de marisco na capital - conseguia aligeirar. Roberta era caneja - irremediavelmente caneja - e os critérios de admissão eram rígidos. A rapariga chorou durante três dias e três noites após o que, seca de lágrimas e pronta para o combate, decidiu mudar de vida: passaria a partilhar uma sabedoria que só se adquire quando fundida com a paixão. 

Na sua actividade profissional Roberta cruzou-se com Roberto, e só a semelhança de nomes já lhe parecia de bom augúrio. Roberto era um homem alto, bem constituído, cujo físico estava escondido por detrás de um balcão onde ele vendia bilhetes e de onde manuseava um walkie-talkie, símbolo de poder e autoridade num trabalhador autárquico: Dra. Roberta? Queira chegar à recepção por obséquio.  E a Dra. Roberta vinha, lesta, entusiasmada, levando o grupo metaforicamente pela mão e falando aos visitantes de táctica e estratégia (e explicava a diferença), das alas que avançam antes das alas que recuam, dos besteiros, dos lanceiros, da coragem da infantaria, do garbo da cavalaria, da vida castrense como escola de virtudes e do fim do serviço militar obrigatório como uma desgraça equiparável à pandemia. 

Num dia em que tudo lhe correu particularmente bem - uma excursão interessada, conhecedora, com ideias polémicas sobre a ala dos namorados ou sobre o quadrado que não era quadrado - decidiu fazer uma surpresa ao Roberto: chegaria a casa dele após o jantar vestida de militar medieval, inundada de uma alegria interior toda feita de desejos de glória e recompensa, de luta corpo a corpo (com o Roberto, claro) que terminaria numa paz assinada entre beijos e carícias. Uma paz fundida, no fundo, com recurso a materiais humanos moldáveis. Se assim o pensou, melhor o fez. Assomou-lhe ao 3º direito, bateu com determinação à campainha e, assim que ele abriu a porta, gritou-lhe um D. Roberto! estais pronto para a peleja? Confrontou-se então com um homem espantado, ligeiramente assustado, que lhe balbuciou com uma voz que desaparecia: Roberta, se calhar nunca te disse que sou objector de consciência... 

Roberta olhou para dentro e pensou: e eu é que sou caneja? Virou as costas e bateu distraidamente com o chapéu-de-arma num extintor de pó seco. Não tinha previsto esta incursão lateral, pelo que tinha de bater em retirada.

JdB

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