02 fevereiro 2024

Moleskine

Frases soltas

Há muito anos, integrado num grupo de amigos relativamente fixo, desenvolvi um hábito totalmente irrelevante: no fim do jantar num restaurante - quase sempre em estabelecimentos baratos - começar a escrever frases que eram ditas à mesa. As frases eram escritas de forma solta, entre as nódoas de vinho tinto, de gordura ou de café. Não tinham de ter uma sequência lógica nem tinham de ser ditas pela mesma pessoa. Findo o jantar, dobrava-se a toalha e levava-se para casa. A leitura posterior da toalha gerava um exercício curioso - saber quem disse, porque disse, a que respondeu, o que foi respondido, o significado da frase. Acima de tudo - estavamos muito longe dessa fase, poderia ser um momento de imaginação.

Um dia destes, no paredão, ouvi uma senhora dizer para a outra: o problema é que ele gosta do seu café de manhã. Dei por mim a recuar 40 anos e a confrontar-me com uma toalha de papel cheia de frases. Em que circunstâncias é que gostar de um café de manhã é um problema? Seria alguém preso?

Um dia soube de alguém que comprava fotografias soltas na Feira da Ladra. Fotografias não identificadas, de pessoas desconhecidas, em locais muitas vezes desconhecidos. O exercício é o mesmo: uma frase solta - escrita ou dita - um retrato solto são pontos de partida para histórias de adivinhação.

***

 Filmes

Partilho com alguém que estou a ver A Paixão de Shakespeare pela enésima vez. Do lado de lá vem a graça: já só falta O Gladiador. A minha resposta é imediata: O Gladiador é um filme; a Paixão de Shakespeare é mais do que isso. 

Os filmes que nos são importantes são-no por diversos motivos: pela qualidade / beleza da banda sonora, pelo momento da vida em que os vimos, pela qualidade da interpretação, pela história, etc. A Paixão de Shakespeare tem várias virtudes: a actriz principal, a história, a aprendizagem da obra Romeu e Julieta mas, acima de tudo, tem uma dimensão de metáfora que me é particularmente agradável. Pode ver-se tudo - a beleza da actriz, o requinte do guarda-roupa, o enquadramento histórico, o desempenho dos actores, etc.  Acima de tudo isso está o diálogo:

- Estamos perdidos,
- Não, vai correr bem.
- Como?
- Não sei, é um mistério.

O encontro com a metáfora é o encontro com uma dimensão superior da estética. Há uma beleza e um encanto na metáfora que não devem ser descurados. Ensinar isto aos excessivamente racionais poderia ser uma obra de misericórdia.

JdB 

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