26 abril 2024

Dos espelhos

Encontrei a imagem acima num post do Linkedin. Não sei o autor, nem o significado. Encontro-me, assim, em território totalmente livre: a interpretação que eu quiser dar-lhe, coincidente ou não com a original, é a verdadeira. Como verdadeira será outra interpretação, de outra pessoa, que nesta imagem verá coisas diferentes das que eu verei.

O que vemos quando nos olhamos ao espelho? Marguerite, da ópera Fausto, de Gounod, canta numa ária do terceiro acto: Ah! je ris de me voir si belle en ce miroir (Bianca Castafiore, personagem de Tintim, afirmará o mesmo). Voltada para o seu espelho, Branca de Neve fará uma pergunta retórica, porque já sabe a resposta: espelho, espelho meu, existe alguém mais belo do que eu?

O que vemos quando nos olhamos ao espelho? E que perguntas dirigimos ao espelho? Fazemos as perguntas cujas respostas já sabemos ou fazemos as perguntas sabendo que só algumas respostas são certas - ou aceitáveis?

Num sentido literal, o meu espelho só reflecte olheiras mais ou menos cavadas, barba por fazer, uns olhos castanhos que revelam as noites difíceis ou as alegrias do momento. O meu espelho menos literal são os outros, mais ou menos próximos. É (também) neles - no que oiço, no que me respondem, no que me dizem, na forma como reagem às minhas interpelações - que eu vejo o que sou e quem sou. É neles que vislumbro o que gosto e não gosto de ver acerca de mim próprio. Esta certeza de que o reflexo do que sou nem sempre é agradável, é o preço que pago pela exposição das minhas fragilidades, dos meus defeitos; da minha humanidade, no fundo. Este preço não é um custo, é um investimento. O que ganho com esta interacção é superior ao que perco com esta interacção, mesmo que nem sempre goste do eu que se reflecte nos olhos dos outros. Porque é aqui que pode começar o caminho da melhoria. A imperfeição tenho-a sempre, resta saber se quero fazer alguma coisa com ela.  

Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Esta frase de Clarice Lispector é de uma grande sapiência. Não diz que não devemos melhorar, mas diz - pelo menos isso diz - que precisamos de saber os nossos defeitos, mesmo que seja para identificar os que sustentam o nosso edifício. Ou sobretudo para isso...

A maçã da imagem é Marguerite, Bianca Castafiore, Branca de Neve. Apesar da parte meia comida, ou mais imperfeita, aquilo que estas personagens vêem é uma maça inteira, perfeita, luzidia, imaculada. Vêem o que querem ver, talvez o que acham que os outros querem ver, mas não vêem o que são. Mesmo que seja a parte imperfeita o que dá encanto à maçã.

JdB

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