08 maio 2024

Vai um gin do Peter’s ?

MANO-A-MANO ENTRE DOIS NOBÉIS DA LITERATURA 

Dois dias depois de receber o Nobel da Literatura, Pablo Neruda (1904-1973) convidou um grupo de amigos e de artistas para irem até Paris festejar com ele o prémio. Um dos convidados foi Gabriel García Marquez (1927-2014), nessa altura a viver em Barcelona. Aproveitando o encontro dos dois colossos latino-americanos, na Cidade das Luzes, a cadeia de televisão chilena gravou, a 23 de Outubro de 1971, um frente-a-frente memorável entre ambos.  

Assumindo o papel de entrevistador, o colombiano faz o chileno discorrer sobre a criação poética e a escrita, em geral. A conversa fluí com enorme abertura e máxima valorização do trabalho do outro, percebendo-se a amizade que os une, além da admiração mútua. García Marquez enaltece a poesia – expressão maior de Neruda e diz que o chileno «era una especie de rey Midas, todo lo que tocaba lo convertía en poesia».  Por seu turno, o poeta declara o romance como o ‘bistek’ da literatura, assim atribuindo um lugar cimeiro ao trabalho do autor de «100 Anos de Solidão», que considera a obra-prima da literatura castelhana, depois de D.Quixote. Nos dois anos de vida que ainda lhe restaram, Neruda empenhou-se activamente na atribuição do Nobel a García Marquez, que veio a recebê-lo em 1982.

O colombiano arranca o diálogo, interpelando o poeta sobre a relação com a realidade, desabafando que o romance o distanciara do quotidiano. Tinha o termo de comparação dos tempos do jornalismo, onde começara a escrever, no ano de 1948. Mas largara os jornais há 16 anos para enveredar pela prosa literária, que o afastara da realidade.  

Neruda confirma a mesma experiência, mas parece menos preocupado com o tema: «O poeta tende a distanciar-se da realidade viva, da realidade atual».  Partilha, depois, a sua preocupação a respeito da arte poética: «invejo a condição do novelista (romancista) que, de uma maneira ou de outra, tem acesso directo ao relato para contar coisas, o que foi abandonado pela poesia». De seguida, foca-se na necessidade de retornar à poesia épica, à maneira dos clássicos, «como Homero e Dante, a uma poesia que contava uma história, e que, penso eu, foi perdida por essa nova geração de escritores, assim como a poesia didática. Eu propus-me fazer com que ensinassem coisas com minha poesia». 

Por seu turno, García Marquez disserta sobre as incursões líricas na sua escrita: «tenho, verdadeiramente, a tendência em converter o relato, a novela, o romance em poesia… Quase estou a consegui-lo. O que aspiro com meu trabalho é encontrar melhores soluções poéticas do que narrativas».  Depois, sublinha a importância de coexistirem romancista e poeta, naturalmente, de forma pacífica e construtiva. Propõe mesmo que «os poetas sejam, cada dia, mais narradores e os romancistas cada vez mais poetas».  Porém, Neruda declara-se incapaz de relatar em prosa e confessa ter momentos em que desejaria ter por perto alguém a quem contar as milhares de histórias que lhe fluem na cabeça. 

A célebre entrevista de 1971 (em gravação de fraca qualidade):  


Para concluir o mano-a-mano entre os dois Nobel amigos seguem três citações antológicas de um e de outro:

    «… E para não tombar, para afirmar-me sobre a terra, continuar a lutar, deixa no meu coração o vinho     errante e o pão implacável da tua doçura.» – Pablo Neruda, in “Canto general”. vol. 1, 1955.

«A felicidade é interior, não exterior, por isso, não depende do que temos, mas do que somos» - Neruda 

«A escrita tornou-se então fluída, e tanto que às vezes me sentia escrevendo pelo puro prazer de narrar, que é talvez o estado humano que mais se parece à levitação.» – Gabriel García Márquez, no prólogo de “Doze contos peregrinos”.

Entretanto, aproxima-se a passos largos o dia da grande festa dos Museus –  a 18 de Maio! E hoje mesmo, o Museu Medeiros e Almeida oferece uma visita guiada ‘Fora d’Horas’, às 18h00 (entrada gratuita - Avenida Open Week 2024 - Museu Medeiros e Almeida

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

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