FILME «AINDA ESTOU AQUI»(1)
Grande proeza, o filme brasileiro de Walter Salles ter ganho o Óscar do Melhor Filme Estrangeiro, além de Baftas, Globos de Ouro e outros galardões significativos da Sétima Arte!
O filme é tão denso, que vai muito além da forte dimensão política que também tem, como denúncia viva da crueldade da ditadura militar (de 1964 a 1985). O golpe militar de Abril de 1964 pôs o Brasil a ferro-e-fogo, sobretudo durante a primeira década do regime e, mais ainda, sob os impiedosos «Anos de Chumbo» da presidência do militar Emílio Garrastazu Médicim, de 1969 a 1974. Precisamente, o encarceramento oficioso e não-assumido de um ex-Senador da oposição – o Eng. Rubens Paiva (1939 até 21.Jan.1971, nas masmorras da ditadura) – ocorreu durante o mandato de Médici e dá o mote ao filme de Salles, que acompanha a história da família do encarcerado. Foi bem real a reviravolta tremenda no dia-a-dia muito alegre dos Paiva, que viviam numa casa animada de amigos e de festas com jardim e vista para o mar. Dói mais ver pessoas de carne-e-osso, com nome, a sofrer.
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Eunice no auge da sua carreira profissional. |
Porém, a história narrada centra-se mais na mãe de família do que naquele marido e pai opositor da iníqua autocracia reinante, levado de casa à frente dos filhos menores, numa pacata tarde de 20 de Janeiro de 1971. Segundo se apuraram décadas mais tarde, a sua prisão deveu-se a um erro dos serviços secretos, que pensaram ser ele o guerrilheiro conhecido pelo nome de guerra “Adriano” e muito próximo do líder da luta armada ao regime – o ex-militar Carlos Lamarca. Este erro tremendo foi fatídico para o promissor engenheiro civil. Para a história ficou também o silêncio cobarde e indesculpável dos sucessivos Governos, que demoraram décadas a emitir a certidão de um óbito ocorrido nas suas masmorras, por morte violenta!
O ponto de vista cinematográfico é dado por um desses filhos, Marcelo, que quis escrever sobre aquele período tão difícil da sua vida, para memória de uma fase crítica do próprio Brasil. Esse livro autobiográfico dá corpo à obra de Salles, adoptando o foco do filho Marcelo, autor e colaborador dos argumentistas: «Quando comecei a escrever o livro, [a minha mãe] estava viva ainda. O que foi importante para mim foi o meu ponto de vista em relação ao que aconteceu, em relação à descoberta de que a minha mãe era uma grande heroína, e não que o meu pai era o grande herói. A minha mãe, que era uma viúva com cinco filhos, que não demonstrava afeto, era uma pessoa sempre presente e que fazia tudo para nos deixar uma vida boa. Inclusive sofria sozinha para que não tivéssemos nenhum tipo de rancor na vida. Ela foi muito generosa com a gente, de sofrer assim para que pudéssemos ter uma vida sem nenhum tipo de trauma. Isso é um gesto corajoso».
As primeiras imagens de «AINDA ESTOU AQUI» referem, por alto, o último escândalo político, que endurecera a luta do regime contra as organizações da oposição militarizada, após o rapto do Embaixador da Suíça, a 7 de Dezembro de 1970. Mas não clarificam que o diplomata foi mantido prisioneiro durante 40 dias, menos ainda que esteve à beira de ser assassinado no cativeiro. Numa cena do filme, trocam-se umas piadas entre os amigos dos Paiva, desvalorizando a longa prisão do suíço. E menciona-se, ao de leve, que um dos seguranças da Embaixada foi baleado pelos raptores. Terá sido mais um a deixar pendurada uma viúva e menores sem pai, mas sem tempo de antena para fazer dar voz a essa injustiça… Também não se contextualiza – nem seria a intenção de um filme sobre a vida atribulada de uma ‘mãe coragem’ – que os raptos de diplomatas eram prática corrente na América Latina dos anos 60, para servirem de moeda de troca na libertação de opositores (vários por atentados terroristas homicidas e por danos reputacionais graves para qualquer país) às ditaduras, sobretudo de direita, que proliferavam no Novo Mundo. Só no Brasil houve 4 raptos, com a morte de seguranças dos respetivos diplomatas (vítimas colaterais inocentes, alheias ao Governo): o Embaixador dos EUA (1969), o Cônsul-Geral do Japão (11.Março.1970), o Embaixador da Alemanha (1970) e o Embaixador da Suíça (cativo de 7.Dez.1970 até 16.Jan.1971). Reconhecendo os militares a menor relevância de um representante suíço, pouco cederam à lista de prisioneiros exigida pelos raptores, intencionalmente para pôr cobro à onda de raptos a diplomatas, como veio a suceder. Por tudo isso, o suíço estava votado a ser morto pelos terroristas, mas valeu-lhe a sua enorme simpatia e boa disposição, acabando protegido pelo chefe dos raptores – o ex-militar Carlos Lamarca. A história deste Embaixador, a quem os carcereiros começaram a chamar de “tio”, também daria um filme. Depois de solto, foi interrogado pelas autoridades para o reconhecimento dos raptores, mas não colaborou, dando a desculpa (falsa) de todos lhe terem aparecido encapuçados. Só mais tarde se soube pelos terroristas, que os animara com o seu humor, ajudando a descomprimir o ambiente tenso nas difíceis negociações com o Governo. Até se converteu no melhor parceiro de canasta do mítico Lamarca. Como último recuerdo dos guerrilheiros, na hora da despedida, um dos chefes (Alfred Sirkis) ofereceu ao Embaixador um disco de Joan Baez com uma dedicatória sua!
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Alfred Sirkis, o guerrilheiro fluente em inglês e considerado gentil. |
Já muito se escreveu sobre o filme e igualmente sobre a figura maior que foi Eunice, forçada pelas circunstâncias. Também esteve presa e sofreu a tortura do sono (pelo menos), durante 12 infindáveis dias, além da filha de 15 anos, esta por 24h.
O momento-chave onde se antevê a sua grandeza invulgar, que não cede a agendas políticas (ainda que muito legítimas), quando podem beliscar a estabilidade dos filhos, aconteceu na fotografia tirada depois do desaparecimento do marido. Quando o fotógrafo pede ao grupo para pararem de rir de modo a transmitirem o desgosto recente, a mãe contradi-lo e explica que a família Paiva festeja a vida e a alegria. Depois, anima os filhos a continuarem a rir-se:
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Mãe e filhos Paiva fotografados para a revista Manchete, em 1971, com o sorriso que o fotógrafo desaconselhava |
Vão no mesmo sentido as palavras da actriz Fernanda Torres ao comentar a dificuldade em personificar aquela mulher profunda, subtil, maximamente sóbria, nos antípodas da tarefa de exteriorização pedida a um actor: «Eunice tem 5 filhos. Então, ela não pode sentar e chorar, ela não pode… Ela não tem permissão para isso. É como se fosse uma figura grega, uma mãe grega. Ela encara a tragédia e a única maneira para que ela siga em frente, crie aqueles filhos e salve a inocência deles é simplesmente dizer ‘sorriam e sigam em frente’. E eu nunca tinha trabalhado assim, porque normalmente, como atriz, você quer demonstrar emoções, e no caso da Eunice, você tem que contê-las. E o poder disso é que o público fica sentado na beirada da cadeira tipo, ‘Por favor, faça alguma coisa’. Então há algo que o público sente com você, que você não está sentindo e mostrando a eles, eles estão sentindo por você. E acho que isso é muito próximo da tragédia grega. E sobre não contar às crianças: como você pode dizer a uma criança que seu pai foi torturado e morto pelo Estado? É algo insuportável. Por isso essa história é tão poderosa. É uma família normal. (…) Tentei ser fiel a essa grande mulher chamada Eunice Paiva, que foi criada para ser a dona de casa perfeita dos anos 50. Ela era a grande mulher por trás do grande homem e então essa tragédia aconteceu na vida deles, e ela ficou viúva com cinco filhos, e depois voltou para a faculdade de direito. E, então, eu estava tentando ser fiel a ela, não fazendo da vida dela um melodrama. (...) É algo que eu e Walter [Salles] dissemos, que tínhamos de ser fiéis à dignidade dela.»
É crucial o empenho de Eunice em devolver a normalidade a uma casa de família ensombrada, sempre vigiada por capangas do regime, impondo saídas reduzidas ao essencial e cada passo na rua controlado ao milímetro. Mau demais! Do marido e pai zero notícias, a começar pelo silêncio ignominioso do Governo, que se demarcou daquele desaparecimento grotesco. Assim somaram novo crime à prisão ilegal e brutal. Valeu que alguma imprensa estrangeira noticiou o caso, tendo presente a proeminência do Eng. Rubens Paiva. E esforçou-se por pressionar o regime, mas como este se desresponsabilizou do “incidente”, as denúncias ficaram a pairar no limbo, sem destinatário. Tudo sinistro, com excepção da grandeza de Eunice, que elegeu como prioridade proporcionar aos 5 filhos uma vida plena, saudável, que os ajudasse a crescer (quase) sem o peso da perda de um pai em condições ultrajantes. Não hesitou em vender a casa apetitosa do Rio de Janeiro e mudar-se para S.Paulo, onde tinha alguma família, o que lhe permitiria estudar Direito. Assim fez, tornando-se numa advogada famosa, especializada nos direitos indígenas.
O título corresponde a uma tirada da ‘mãe coragem’ que, já em idade avançada e semi alheada pelo Alzheimer, reage a uma conversa dos filhos adultos sobre o desaparecimento do seu marido, lembrando-lhes que «ainda estou aqui». Quando se tem por perto familiares com este tipo de demências, reconhece-se muito bem o alcance maior das brechas de lucidez nessas pessoas, sempre seres humanos por inteiro, ainda que desmemoriados, enfraquecidos, dependentes. De facto, a humanidade é capaz do melhor, por vezes também do pior, o que torna mais luminosos os gestos bondosos e positivos! Ainda bem que Eunice esteve ali e Salles quis imortalizá-la no cinema.
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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Título original: AINDA ESTOU AQUI
Título traduzido em inglês: I’m Still Here
Realização: Walter Salles
Argumento: Murilo Hauser e Heitor Lorega, a partir do livro homónimo de Marcelo Rubens Paiva
Co-produção: Arte France Cinéma, Conspiração Filmes, Globoplay
Banda Sonora: Warren Ellis
Duração: 135 min.
Ano: 2024
País: Brasil e França
Elenco:
Fernanda Torres – a mãe Eunice Paiva
Selton Melo – o pai Paiva
Fernanda Montenegro – a mãe Eunice no final de vida
Valentina Herszage – Vera, a indomável filha mais filha