12 março 2025

Vai um gin do Peter’s?

 FILME «AINDA ESTOU AQUI»(1)

Grande proeza, o filme brasileiro de Walter Salles ter ganho o Óscar do Melhor Filme Estrangeiro, além de Baftas, Globos de Ouro e outros galardões significativos da Sétima Arte! 

O filme é tão denso, que vai muito além da forte dimensão política que também tem, como denúncia viva da crueldade da ditadura militar (de 1964 a 1985). O golpe militar de Abril de 1964 pôs o Brasil a ferro-e-fogo, sobretudo durante a primeira década do regime e, mais ainda, sob os impiedosos «Anos de Chumbo» da presidência do militar Emílio Garrastazu Médicim, de 1969 a 1974. Precisamente, o encarceramento oficioso e não-assumido de um ex-Senador da oposição – o Eng. Rubens Paiva (1939 até 21.Jan.1971, nas masmorras da ditadura) – ocorreu durante o mandato de Médici e dá o mote ao filme de Salles, que acompanha a história da família do encarcerado. Foi bem real a reviravolta tremenda no dia-a-dia muito alegre dos Paiva, que viviam numa casa animada de amigos e de festas com jardim e vista para o mar. Dói mais ver pessoas de carne-e-osso, com nome, a sofrer. 



Eunice no auge da sua carreira profissional.

Porém, a história narrada centra-se mais na mãe de família do que naquele marido e pai opositor da iníqua autocracia reinante, levado de casa à frente dos filhos menores, numa pacata tarde de 20 de Janeiro de 1971. Segundo se apuraram décadas mais tarde, a sua prisão deveu-se a um erro dos serviços secretos, que pensaram ser ele o guerrilheiro conhecido pelo nome de guerra “Adriano” e muito próximo do líder da luta armada ao regime – o ex-militar Carlos Lamarca. Este erro tremendo foi fatídico para o promissor engenheiro civil. Para a história ficou também o silêncio cobarde e indesculpável dos sucessivos Governos, que demoraram décadas a emitir a certidão de um óbito ocorrido nas suas masmorras, por morte violenta! 

O ponto de vista cinematográfico é dado por um desses filhos, Marcelo, que quis escrever sobre aquele período tão difícil da sua vida, para memória de uma fase crítica do próprio Brasil. Esse livro autobiográfico dá corpo à obra de Salles, adoptando o foco do filho Marcelo, autor e colaborador dos argumentistas: «Quando comecei a escrever o livro, [a minha mãe] estava viva ainda. O que foi importante para mim foi o meu ponto de vista em relação ao que aconteceu, em relação à descoberta de que a minha mãe era uma grande heroína, e não que o meu pai era o grande herói. A minha mãe, que era uma viúva com cinco filhos, que não demonstrava afeto, era uma pessoa sempre presente e que fazia tudo para nos deixar uma vida boa. Inclusive sofria sozinha para que não tivéssemos nenhum tipo de rancor na vida. Ela foi muito generosa com a gente, de sofrer assim para que pudéssemos ter uma vida sem nenhum tipo de trauma. Isso é um gesto corajoso».  

As primeiras imagens de «AINDA ESTOU AQUI» referem, por alto, o último escândalo político, que endurecera a luta do regime contra as organizações da oposição militarizada, após o rapto do Embaixador da Suíça, a 7 de Dezembro de 1970. Mas não clarificam que o diplomata foi mantido prisioneiro durante 40 dias, menos ainda que esteve à beira de ser assassinado no cativeiro. Numa cena do filme, trocam-se umas piadas entre os amigos dos Paiva, desvalorizando a longa prisão do suíço. E menciona-se, ao de leve, que um dos seguranças da Embaixada foi baleado pelos raptores. Terá sido mais um a deixar pendurada uma viúva e menores sem pai, mas sem tempo de antena para fazer dar voz a essa injustiça… Também não se contextualiza – nem seria a intenção de um filme sobre a vida atribulada de uma ‘mãe coragem’ – que os raptos de diplomatas eram prática corrente na América Latina dos anos 60, para servirem de moeda de troca na libertação de opositores (vários por atentados terroristas homicidas e por danos reputacionais graves para qualquer país) às ditaduras, sobretudo de direita, que proliferavam no Novo Mundo. Só no Brasil houve 4 raptos, com a morte de seguranças dos respetivos diplomatas (vítimas colaterais inocentes, alheias ao Governo): o Embaixador dos EUA (1969), o Cônsul-Geral do Japão (11.Março.1970), o Embaixador da Alemanha (1970) e o Embaixador da Suíça (cativo de 7.Dez.1970 até 16.Jan.1971). Reconhecendo os militares a menor relevância de um representante suíço, pouco cederam à lista de prisioneiros exigida pelos raptores, intencionalmente para pôr cobro à onda de raptos a diplomatas, como veio a suceder.  Por tudo isso, o suíço estava votado a ser morto pelos terroristas, mas valeu-lhe a sua enorme simpatia e boa disposição, acabando protegido pelo chefe dos raptores – o ex-militar Carlos Lamarca. A história deste Embaixador, a quem os carcereiros começaram a chamar de “tio”, também daria um filme. Depois de solto, foi interrogado pelas autoridades para o reconhecimento dos raptores, mas não colaborou, dando a desculpa (falsa) de todos lhe terem aparecido encapuçados. Só mais tarde se soube pelos terroristas, que os animara com o seu humor, ajudando a descomprimir o ambiente tenso nas difíceis negociações com o Governo. Até se converteu no melhor parceiro de canasta do mítico Lamarca. Como último recuerdo dos guerrilheiros, na hora da despedida, um dos chefes (Alfred Sirkis) ofereceu ao Embaixador um disco de Joan Baez com uma dedicatória sua!  

Alfred Sirkis, o guerrilheiro fluente em inglês e considerado gentil.

Imagens após a libertação do diplomata Giavanni Enrico Bucher, a 16.JAN.1971, que quase esquecera os cigarros num dos bancos de trás,
numa das mudanças de carros feita em acelerado, para os sequestradores despistarem as autoridades.
Foi Embaixador em Lisboa, de 1975 a 1978, em pleno PREC!

Já muito se escreveu sobre o filme e igualmente sobre a figura maior que foi Eunice, forçada pelas circunstâncias. Também esteve presa e sofreu a tortura do sono (pelo menos), durante 12 infindáveis dias, além da filha de 15 anos, esta por 24h. 

O momento-chave onde se antevê a sua grandeza invulgar, que não cede a agendas políticas (ainda que muito legítimas), quando podem beliscar a estabilidade dos filhos, aconteceu na fotografia tirada depois do desaparecimento do marido. Quando o fotógrafo pede ao grupo para pararem de rir de modo a transmitirem o desgosto recente, a mãe contradi-lo e explica que a família Paiva festeja a vida e a alegria. Depois, anima os filhos a continuarem a rir-se:  

Mãe e filhos Paiva fotografados para a revista Manchete, em 1971, com o sorriso que o fotógrafo desaconselhava
Também o realizador conheceu Eunice como mãe dos seus amigos: «Eunice era alguém na vida real e no filme, que arquitetou formas de resistência inéditas, e uma delas que é bastante única é que sempre que pediam à família, sabe, para chorar ou serem retratados como uma família triste, ela articulava e oferecia exatamente o oposto, de serem retratados como uma família sorridente. Ou seja, ela nunca permitiu ser retratada como parte de um melodrama. Ela se recusou a isso. (…) Considero a [Fernanda Torres] coautora do filme por inteiro. Ela teve a dádiva e a inteligência emocional necessárias para retratar aquela mulher extremamente contida, mas com uma imensa chama, uma imensa força interior, porque a Eunice é isso: um vulcão que está aceso mas não derrama. E diz-nos tanto com tão pouco.»

Vão no mesmo sentido as palavras da actriz Fernanda Torres ao comentar a dificuldade em personificar aquela mulher profunda, subtil, maximamente sóbria, nos antípodas da tarefa de exteriorização pedida a um actor: «Eunice tem 5 filhos. Então, ela não pode sentar e chorar, ela não pode… Ela não tem permissão para isso. É como se fosse uma figura grega, uma mãe grega. Ela encara a tragédia e a única maneira para que ela siga em frente, crie aqueles filhos e salve a inocência deles é simplesmente dizer ‘sorriam e sigam em frente’. E eu nunca tinha trabalhado assim, porque normalmente, como atriz, você quer demonstrar emoções, e no caso da Eunice, você tem que contê-las. E o poder disso é que o público fica sentado na beirada da cadeira tipo, ‘Por favor, faça alguma coisa’. Então há algo que o público sente com você, que você não está sentindo e mostrando a eles, eles estão sentindo por você. E acho que isso é muito próximo da tragédia grega. E sobre não contar às crianças: como você pode dizer a uma criança que seu pai foi torturado e morto pelo Estado? É algo insuportável. Por isso essa história é tão poderosa. É uma família normal. (…) Tentei ser fiel a essa grande mulher chamada Eunice Paiva, que foi criada para ser a dona de casa perfeita dos anos 50. Ela era a grande mulher por trás do grande homem e então essa tragédia aconteceu na vida deles, e ela ficou viúva com cinco filhos, e depois voltou para a faculdade de direito. E, então, eu estava tentando ser fiel a ela, não fazendo da vida dela um melodrama. (...) É algo que eu e Walter [Salles] dissemos, que tínhamos de ser fiéis à dignidade dela.» 

É crucial o empenho de Eunice em devolver a normalidade a uma casa de família ensombrada, sempre vigiada por capangas do regime, impondo saídas reduzidas ao essencial e cada passo na rua controlado ao milímetro. Mau demais! Do marido e pai zero notícias, a começar pelo silêncio ignominioso do Governo, que se demarcou daquele desaparecimento grotesco. Assim somaram novo crime à prisão ilegal e brutal. Valeu que alguma imprensa estrangeira noticiou o caso, tendo presente a proeminência do Eng. Rubens Paiva. E esforçou-se por pressionar o regime, mas como este se desresponsabilizou do “incidente”, as denúncias ficaram a pairar no limbo, sem destinatário. Tudo sinistro, com excepção da grandeza de Eunice, que elegeu como prioridade proporcionar aos 5 filhos uma vida plena, saudável, que os ajudasse a crescer (quase) sem o peso da perda de um pai em condições ultrajantes. Não hesitou em vender a casa apetitosa do Rio de Janeiro e mudar-se para S.Paulo, onde tinha alguma família, o que lhe permitiria estudar Direito. Assim fez, tornando-se numa advogada famosa, especializada nos direitos indígenas.     

O título corresponde a uma tirada da ‘mãe coragem’ que, já em idade avançada e semi alheada pelo Alzheimer, reage a uma conversa dos filhos adultos sobre o desaparecimento do seu marido, lembrando-lhes que «ainda estou aqui». Quando se tem por perto familiares com este tipo de demências, reconhece-se muito bem o alcance maior das brechas de lucidez nessas pessoas, sempre seres humanos por inteiro, ainda que desmemoriados, enfraquecidos, dependentes.  De facto, a humanidade é capaz do melhor, por vezes também do pior, o que torna mais luminosos os gestos bondosos e positivos!  Ainda bem que Eunice esteve ali e Salles quis imortalizá-la no cinema.  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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(1) FICHA TÉCNICA
Título original: AINDA ESTOU AQUI
Título traduzido em inglês: I’m Still Here
Realização: Walter Salles
Argumento: Murilo Hauser e Heitor Lorega, a partir do livro homónimo de Marcelo Rubens Paiva
Co-produção: Arte France Cinéma, Conspiração Filmes, Globoplay
Banda Sonora: Warren Ellis
Duração: 135 min.
Ano: 2024
País: Brasil e França
Elenco:
Fernanda Torres – a mãe Eunice Paiva
Selton Melo – o pai Paiva 
Fernanda Montenegro – a mãe Eunice no final de vida
Valentina Herszage – Vera, a indomável filha mais filha

 


11 março 2025

Dos touros em Olivença

A convite de gente que me é próxima, voltei a Olivença - e não para repor a justiça dos factos e colocá-la de novo sob a alçada de Portugal. Em bom rigor, conversando com vizinhos de bancada na praça local, e falando deste tema, um cavalheiro de Alcochete (gente que aprecia o azul e branco das bandeiras) dizia-me com acerto: deixe lá Olivença ficar em Espanha. Sempre é da maneira que podemos vir cá ver touros de morte. Retomo o fio à meada: voltei a Olivença para ver uma novilhada e uma corrida de touros: uma manhã e um tarde bem passadas, ainda que com ameaça permanente de chuva, que foi caindo aqui e ali. 

Olga Casado, uma novilheira espanhola de 22 anos. 

Olga Casado, a única rapariga / senhora que vi tourear a pé
Para uma pessoa como eu, cheio de apreço por rituais e tradições (uma coisa não vai totalmente sem a outra) ir aos touros a Espanha é um festim: da entrada supersticiosa dos toureiros em praça ao convívio entre pessoas na bancada, passando pela coreografia dos vários intervenientes na arena ao longo das lides, tudo obedece a uma tradição e / ou a um ritual, seguramente com décadas, se não séculos. É importante, por isso, estar-se atento (quem aprecia, é claro) a mais do que à lide propriamente dita: o agradecimento discreto do bandarilheiro junto ao burladero, a música que deve tocar quando o novilheiro bandarilha, o pasodoble que é uma tradição no último touro de cada uma das partes, etc.  

Sendo uma praça de 3ª, Olivença é generosa nos prémios: quase toda a gente é premiada com uma orelha (por vezes duas) e música abundante. A população gosta e o director da corrida prefere a generosidade ao rigor. 

Sorte de gaiola de Tomás Bastos (Portugal) um dos novilheiros em praça, e que cortou 4 orelhas 
Olivença em dia de corrida de touros provoca um estranho sentimento em mim. Como dizia hoje a quem me convidou, talvez não haja recinto de espectáculos mais desconfortável do que a praça de touros de Olivença: é pequena, acanhada, com um espaço menos que decente para uma pessoa razoável colocar o seu corpo. Requer um encaixe perfeito entre pessoas, e, quem está na fila acima da nossa tem de abrir as pernas para permitir o ajuste. E no entanto, apesar do desconforto, pouco ou nada me importa: a cada 15 ou 20 minutos (tempo médio de uma lide) todos nos levantamos, e esticamos as costas ou os braços, que não há espaço para mais. E o gosto de ir a Olivença - também na companhia de quem vou - tudo compensa. 

Para o ano lá estarei - em Deus dando-me saúde e em não se acabando as corridas... Parafraseando Chico Buarque, foi bonita a festa, pá.

JdB  

09 março 2025

I Domingo da Quaresma

 EVANGELHO – Lucas 4,1-13

Naquele tempo,
Jesus, cheio do Espírito Santo,
retirou-Se das margens do Jordão.
Durante quarenta dias,
esteve no deserto, conduzido pelo Espírito,
e foi tentado pelo diabo.
Nesses dias não comeu nada
e, passado esse tempo, sentiu fome.
O diabo disse-lhe:
«Se és Filho de Deus,
manda a esta pedra que se transforme em pão».
Jesus respondeu-lhe:
«Está escrito:
‘Nem só de pão vive o homem’».
O diabo levou-O a um lugar alto
e mostrou-Lhe num instante todos os reinos da terra
e disse-Lhe:
«Eu Te darei todo este poder e a glória destes reinos,
porque me foram confiados e os dou a quem eu quiser.
Se Te prostrares diante de mim, tudo será teu».
Jesus respondeu-lhe:
«Está escrito:
‘Ao Senhor teu Deus adorarás,
só a Ele prestarás culto’».
Então o demónio levou-O a Jerusalém,
colocou-O sobre o pináculo do Templo
e disse-Lhe:
«Se és Filho de Deus,
atira-te daqui abaixo,
porque está escrito:
‘Ele dará ordens aos seus Anjos a teu respeito,
para que te guardem’;
e ainda: ‘Na palma das mãos te levarão,
para que não tropeces em alguma pedra’».
Jesus respondeu-lhe:
«Está mandado:
‘Não tentarás o Senhor teu Deus’».
Então o diabo, tendo terminado toda a espécie de tentação,
retirou-se da presença de Jesus, até certo tempo.

07 março 2025

Ainda da gestão de expectativas

 APORTAR

Feliz o homem que chega a bom porto,
Que deixa atrás de si mares e tempestades,
Cujos sonhos estão mortos ou jamais nascidos;
E que se senta e bebe na taberna de Bremen,
Junto da lareira com uma paz serena.
Feliz o homem que é como uma chama extinta,
Feliz o homem que é como a areia do estuário,
que depôs o seu fardo e limpou a testa
e descansa no bordo do caminho.
Não teme, nem deseja, nem espera,
mas olha fixamente o sol que se põe.
10 de Setembro, 1964
Primo Levi
(1919 - 1987)
in "A Uma Hora Incerta"
(Tradução de Rui Miguel Ribeiro)

***

Primo Levi (1919 - 1987) morreu na sequência de uma queda nas escadas do prédio onde vivia. Há quem ache que se suicidou, há quem ache que morreu de acidente. Eli Wiesel diria que ele tinha morrido em Auschwitz, onde esteve preso, 40 anos antes.


Um dias destes apanhava uma conversa onde alguém dizia que o segredo da felicidade era não ter expectativas, porque se nada se esperasse da vida nenhuma desilusão se teria; esse alguém concordou comigo quando defendi que talvez o importante fosse ter uma gestão correcta das expectativas, que ninguém saudável conseguiria viver sem esperar nada. Ontem, em conversa com outro alguém, falou-se nisto também, na forma como conseguimos - e vemos vantagens ou não - gerir o que esperamos dos outros, como conseguimos lidar com as desilusões que os outros nos provocam, com que sentimento aceitamos - ou não - as diferenças. Ontem ainda encontrei um texto atribuído a Jordan Peterson sobre a forma de melhorar uma relação, seja com um cônjuge, um irmão, um pai, um filho, um amigo ou um colega. A regra nº 3 era: é difícil consertar alguém. É ainda mais difícil consertar alguém que não quer ser consertado.


Tudo isto está alinhado: o Jordan Peterson, as minhas conversas e o poema do Primo Levi - sobretudo este poema. O que queremos ser nas diversas fases da vida? Queremos sentar-nos junto da lareira com um paz serena? E este verso está alinhado com a ideia do homem que é feliz como uma chama extinta? Talvez a idade nos deva tornar mais sábios, para combater as guerras que vale a pena combater e não as guerras que nenhum valor acrescentam. Talvez a idade nos deva ensinar que não se tiram laranjas de figueiras e que não transformamos ninguém que não queira ser transformado. Talvez nem consigamos mesmo transformar de forma consistente quem queira ser transformado...


Que olhemos fixamente o sol que se põe, não como o fim de um dia, mas como algo que se repete e, como tempo de recolhimento, de regresso à casa sossegada, como diria S. João da Cruz, é um momento de particular beleza.


JdB

06 março 2025

Textos dos dias que correm

 Para a generalidade das mulheres, ter um amante significa ter uma quantidade de ocupações, de factos, de circunstâncias a que, pelo seu organismo e pela sua educação, acham um encanto inefável. Ter um amante não é para elas abrir de noite a porta do seu jardim. Ter um amante é ter a feliz, a doce ocasião destes pequeninos afazeres - escrever cartas às escondidas, tremer e ter susto: fechar-se a sós para pensar, estendida no sofá; ter o orgulho de possuir um segredo; ter aquela ideia dele e do seu amor, acompanhando com uma melodia em surdina todos os seus movimentos, a toilette, o banho, o bordado, o penteado: é estar numa sala cheia de gente, e vê-lo a ele, sério e indiferente, e só eles dois estarem no encanto do mistério; é procurar uma certa flor que se combinou pôr no cabelo; é estar triste por ideias amorosas, nos dias de chuva, ao canto de um fogão; é a felicidade de andar melancólica no fundo de um cupé; é fazer toilette com intenção, o maior dos encantos femininos! Etc. Estas pequeninas coisas, que enchem a sua existência, que a complicam em cor-de-rosa, que a idealizam - são a sua grande atracção. É o que amam. O homem amam-no pela quantidade do mistério, de interesse, de ocupação romanesca que ele dá à sua existência. De resto, amam o amor. Havia muito deste sentimento nas místicas e nas antigas noivas de Jesus. Amavam a Deus porque ele era o pretexto do culto.


Eça de Queirós, in 'Uma Campanha Alegre'

05 março 2025

Poemas para o dia de hoje

Poema de Uma Quarta-feira de Cinzas

Entre a turba grosseira e fútil
Um Pierrot doloroso passa.
Veste-o uma túnica inconsútil
Feita de sonho e de desgraça... 

O seu delírio manso agrupa
Atrás dele os maus e os basbaques.
Este o indigita, este outro o apupa...
Indiferente a tais ataques, 

Nublada a vista em pranto inútil,
Dolorosamente ele passa.
Veste-o uma túnica inconsútil,
Feita de sonho e de desgraça...

Manuel Bandeira

***

Soneto de Quarta-feira de Cinzas

Por seres quem me foste, grave e pura
Em tão doce surpresa conquistada
Por seres uma branca criatura
De uma brancura de manhã raiada 

Por seres de uma rara formosura
Malgrado a vida dura e atormentada
Por seres mais que a simples aventura
E menos que a constante namorada 

Porque te vi nascer de mim sozinha
Como a noturna flor desabrochada
A uma fala de amor, talvez perjura 

Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo, e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura.

Vinícius de Moraes

***

Ash Wednesday

(...)
Blessed sister, holy mother, spirit of the fountain, spirit of the garden, 
Suffer us not to mock ourselves with falsehood
Teach us to care and not to care
Teach us to sit still
Even among these rocks,
Our peace in His will
And even among these rocks
Sister, mother
And spirit of the river, spirit of the sea,
Suffer me not to be separated 
    And let my cry come unto Thee.

T. S. Eliot



04 março 2025

3ªfeira de Carnaval

Tomei uma decisão: todas as 3ªs feiras de Carnaval, daqui até ao momento da minha morte ou do fecho do estabelecimento, o que acontecer primeiro, publicarei este texto, mesmo que já tenha netos. 

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Chega-se a esta altura do Carnaval e todo o meu corpo se arrepela de terror pela época. Felizmente já não me desafiam para festas, já não tenho filhos para mascarar e sobre os meus netos não exerço responsabilidades. Não obstante, desejo a todos os foliões a maior das alegrias.

Repito a música que postei nesta mesma 3ª feira de Carnaval de 2016, de 2018 e de 2024, qualquer que tenha sido o dia. Talvez não haja música mais apropriada para celebrar o momento em que todas as folias são possíveis antes das restrições quaresmais.

Deixo-vos com Manhã de Carnaval - a toada lenta retrata a energia com que celebro o dia.

JdB 

02 março 2025

VIII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 6, 39-45

Naquele tempo.
disse Jesus aos discípulos a seguinte parábola:
«Poderá um cego guiar outro cego?
Não cairão os dois nalguma cova?
O discípulo não é superior ao mestre,
mas todo o discípulo perfeito deverá ser como o seu mestre.
Porque vês o argueiro que o teu irmão tem na vista
e não reparas na trave que está na tua?
Como podes dizer a teu irmão:
‘Irmão, deixa-me tirar o argueiro que tens na vista’,
se tu não vês a trave que está na tua?
Hipócrita, tira primeiro a trave da tua vista
e então verás bem para tirar o argueiro da vista do teu irmão.
Não há árvore boa que dê mau fruto,
nem árvore má que dê bom fruto.
Cada árvore conhece-se pelo seu fruto:
não se colhem figos dos espinheiros,
nem se apanham uvas das sarças.
O homem bom,
do bom tesouro do seu coração tira o bem:
e o homem mau,
da sua maldade tira o mal;
pois a boca fala do que transborda do coração».

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