11 março 2025

Dos touros em Olivença

A convite de gente que me é próxima, voltei a Olivença - e não para repor a justiça dos factos e colocá-la de novo sob a alçada de Portugal. Em bom rigor, conversando com vizinhos de bancada na praça local, e falando deste tema, um cavalheiro de Alcochete (gente que aprecia o azul e branco das bandeiras) dizia-me com acerto: deixe lá Olivença ficar em Espanha. Sempre é da maneira que podemos vir cá ver touros de morte. Retomo o fio à meada: voltei a Olivença para ver uma novilhada e uma corrida de touros: uma manhã e um tarde bem passadas, ainda que com ameaça permanente de chuva, que foi caindo aqui e ali. 

Olga Casado, uma novilheira espanhola de 22 anos. 

Olga Casado, a única rapariga / senhora que vi tourear a pé
Para uma pessoa como eu, cheio de apreço por rituais e tradições (uma coisa não vai totalmente sem a outra) ir aos touros a Espanha é um festim: da entrada supersticiosa dos toureiros em praça ao convívio entre pessoas na bancada, passando pela coreografia dos vários intervenientes na arena ao longo das lides, tudo obedece a uma tradição e / ou a um ritual, seguramente com décadas, se não séculos. É importante, por isso, estar-se atento (quem aprecia, é claro) a mais do que à lide propriamente dita: o agradecimento discreto do bandarilheiro junto ao burladero, a música que deve tocar quando o novilheiro bandarilha, o pasodoble que é uma tradição no último touro de cada uma das partes, etc.  

Sendo uma praça de 3ª, Olivença é generosa nos prémios: quase toda a gente é premiada com uma orelha (por vezes duas) e música abundante. A população gosta e o director da corrida prefere a generosidade ao rigor. 

Sorte de gaiola de Tomás Bastos (Portugal) um dos novilheiros em praça, e que cortou 4 orelhas 
Olivença em dia de corrida de touros provoca um estranho sentimento em mim. Como dizia hoje a quem me convidou, talvez não haja recinto de espectáculos mais desconfortável do que a praça de touros de Olivença: é pequena, acanhada, com um espaço menos que decente para uma pessoa razoável colocar o seu corpo. Requer um encaixe perfeito entre pessoas, e, quem está na fila acima da nossa tem de abrir as pernas para permitir o ajuste. E no entanto, apesar do desconforto, pouco ou nada me importa: a cada 15 ou 20 minutos (tempo médio de uma lide) todos nos levantamos, e esticamos as costas ou os braços, que não há espaço para mais. E o gosto de ir a Olivença - também na companhia de quem vou - tudo compensa. 

Para o ano lá estarei - em Deus dando-me saúde e em não se acabando as corridas... Parafraseando Chico Buarque, foi bonita a festa, pá.

JdB  

09 março 2025

I Domingo da Quaresma

 EVANGELHO – Lucas 4,1-13

Naquele tempo,
Jesus, cheio do Espírito Santo,
retirou-Se das margens do Jordão.
Durante quarenta dias,
esteve no deserto, conduzido pelo Espírito,
e foi tentado pelo diabo.
Nesses dias não comeu nada
e, passado esse tempo, sentiu fome.
O diabo disse-lhe:
«Se és Filho de Deus,
manda a esta pedra que se transforme em pão».
Jesus respondeu-lhe:
«Está escrito:
‘Nem só de pão vive o homem’».
O diabo levou-O a um lugar alto
e mostrou-Lhe num instante todos os reinos da terra
e disse-Lhe:
«Eu Te darei todo este poder e a glória destes reinos,
porque me foram confiados e os dou a quem eu quiser.
Se Te prostrares diante de mim, tudo será teu».
Jesus respondeu-lhe:
«Está escrito:
‘Ao Senhor teu Deus adorarás,
só a Ele prestarás culto’».
Então o demónio levou-O a Jerusalém,
colocou-O sobre o pináculo do Templo
e disse-Lhe:
«Se és Filho de Deus,
atira-te daqui abaixo,
porque está escrito:
‘Ele dará ordens aos seus Anjos a teu respeito,
para que te guardem’;
e ainda: ‘Na palma das mãos te levarão,
para que não tropeces em alguma pedra’».
Jesus respondeu-lhe:
«Está mandado:
‘Não tentarás o Senhor teu Deus’».
Então o diabo, tendo terminado toda a espécie de tentação,
retirou-se da presença de Jesus, até certo tempo.

07 março 2025

Ainda da gestão de expectativas

 APORTAR

Feliz o homem que chega a bom porto,
Que deixa atrás de si mares e tempestades,
Cujos sonhos estão mortos ou jamais nascidos;
E que se senta e bebe na taberna de Bremen,
Junto da lareira com uma paz serena.
Feliz o homem que é como uma chama extinta,
Feliz o homem que é como a areia do estuário,
que depôs o seu fardo e limpou a testa
e descansa no bordo do caminho.
Não teme, nem deseja, nem espera,
mas olha fixamente o sol que se põe.
10 de Setembro, 1964
Primo Levi
(1919 - 1987)
in "A Uma Hora Incerta"
(Tradução de Rui Miguel Ribeiro)

***

Primo Levi (1919 - 1987) morreu na sequência de uma queda nas escadas do prédio onde vivia. Há quem ache que se suicidou, há quem ache que morreu de acidente. Eli Wiesel diria que ele tinha morrido em Auschwitz, onde esteve preso, 40 anos antes.


Um dias destes apanhava uma conversa onde alguém dizia que o segredo da felicidade era não ter expectativas, porque se nada se esperasse da vida nenhuma desilusão se teria; esse alguém concordou comigo quando defendi que talvez o importante fosse ter uma gestão correcta das expectativas, que ninguém saudável conseguiria viver sem esperar nada. Ontem, em conversa com outro alguém, falou-se nisto também, na forma como conseguimos - e vemos vantagens ou não - gerir o que esperamos dos outros, como conseguimos lidar com as desilusões que os outros nos provocam, com que sentimento aceitamos - ou não - as diferenças. Ontem ainda encontrei um texto atribuído a Jordan Peterson sobre a forma de melhorar uma relação, seja com um cônjuge, um irmão, um pai, um filho, um amigo ou um colega. A regra nº 3 era: é difícil consertar alguém. É ainda mais difícil consertar alguém que não quer ser consertado.


Tudo isto está alinhado: o Jordan Peterson, as minhas conversas e o poema do Primo Levi - sobretudo este poema. O que queremos ser nas diversas fases da vida? Queremos sentar-nos junto da lareira com um paz serena? E este verso está alinhado com a ideia do homem que é feliz como uma chama extinta? Talvez a idade nos deva tornar mais sábios, para combater as guerras que vale a pena combater e não as guerras que nenhum valor acrescentam. Talvez a idade nos deva ensinar que não se tiram laranjas de figueiras e que não transformamos ninguém que não queira ser transformado. Talvez nem consigamos mesmo transformar de forma consistente quem queira ser transformado...


Que olhemos fixamente o sol que se põe, não como o fim de um dia, mas como algo que se repete e, como tempo de recolhimento, de regresso à casa sossegada, como diria S. João da Cruz, é um momento de particular beleza.


JdB

06 março 2025

Textos dos dias que correm

 Para a generalidade das mulheres, ter um amante significa ter uma quantidade de ocupações, de factos, de circunstâncias a que, pelo seu organismo e pela sua educação, acham um encanto inefável. Ter um amante não é para elas abrir de noite a porta do seu jardim. Ter um amante é ter a feliz, a doce ocasião destes pequeninos afazeres - escrever cartas às escondidas, tremer e ter susto: fechar-se a sós para pensar, estendida no sofá; ter o orgulho de possuir um segredo; ter aquela ideia dele e do seu amor, acompanhando com uma melodia em surdina todos os seus movimentos, a toilette, o banho, o bordado, o penteado: é estar numa sala cheia de gente, e vê-lo a ele, sério e indiferente, e só eles dois estarem no encanto do mistério; é procurar uma certa flor que se combinou pôr no cabelo; é estar triste por ideias amorosas, nos dias de chuva, ao canto de um fogão; é a felicidade de andar melancólica no fundo de um cupé; é fazer toilette com intenção, o maior dos encantos femininos! Etc. Estas pequeninas coisas, que enchem a sua existência, que a complicam em cor-de-rosa, que a idealizam - são a sua grande atracção. É o que amam. O homem amam-no pela quantidade do mistério, de interesse, de ocupação romanesca que ele dá à sua existência. De resto, amam o amor. Havia muito deste sentimento nas místicas e nas antigas noivas de Jesus. Amavam a Deus porque ele era o pretexto do culto.


Eça de Queirós, in 'Uma Campanha Alegre'

05 março 2025

Poemas para o dia de hoje

Poema de Uma Quarta-feira de Cinzas

Entre a turba grosseira e fútil
Um Pierrot doloroso passa.
Veste-o uma túnica inconsútil
Feita de sonho e de desgraça... 

O seu delírio manso agrupa
Atrás dele os maus e os basbaques.
Este o indigita, este outro o apupa...
Indiferente a tais ataques, 

Nublada a vista em pranto inútil,
Dolorosamente ele passa.
Veste-o uma túnica inconsútil,
Feita de sonho e de desgraça...

Manuel Bandeira

***

Soneto de Quarta-feira de Cinzas

Por seres quem me foste, grave e pura
Em tão doce surpresa conquistada
Por seres uma branca criatura
De uma brancura de manhã raiada 

Por seres de uma rara formosura
Malgrado a vida dura e atormentada
Por seres mais que a simples aventura
E menos que a constante namorada 

Porque te vi nascer de mim sozinha
Como a noturna flor desabrochada
A uma fala de amor, talvez perjura 

Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo, e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura.

Vinícius de Moraes

***

Ash Wednesday

(...)
Blessed sister, holy mother, spirit of the fountain, spirit of the garden, 
Suffer us not to mock ourselves with falsehood
Teach us to care and not to care
Teach us to sit still
Even among these rocks,
Our peace in His will
And even among these rocks
Sister, mother
And spirit of the river, spirit of the sea,
Suffer me not to be separated 
    And let my cry come unto Thee.

T. S. Eliot



04 março 2025

3ªfeira de Carnaval

Tomei uma decisão: todas as 3ªs feiras de Carnaval, daqui até ao momento da minha morte ou do fecho do estabelecimento, o que acontecer primeiro, publicarei este texto, mesmo que já tenha netos. 

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Chega-se a esta altura do Carnaval e todo o meu corpo se arrepela de terror pela época. Felizmente já não me desafiam para festas, já não tenho filhos para mascarar e sobre os meus netos não exerço responsabilidades. Não obstante, desejo a todos os foliões a maior das alegrias.

Repito a música que postei nesta mesma 3ª feira de Carnaval de 2016, de 2018 e de 2024, qualquer que tenha sido o dia. Talvez não haja música mais apropriada para celebrar o momento em que todas as folias são possíveis antes das restrições quaresmais.

Deixo-vos com Manhã de Carnaval - a toada lenta retrata a energia com que celebro o dia.

JdB 

02 março 2025

VIII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 6, 39-45

Naquele tempo.
disse Jesus aos discípulos a seguinte parábola:
«Poderá um cego guiar outro cego?
Não cairão os dois nalguma cova?
O discípulo não é superior ao mestre,
mas todo o discípulo perfeito deverá ser como o seu mestre.
Porque vês o argueiro que o teu irmão tem na vista
e não reparas na trave que está na tua?
Como podes dizer a teu irmão:
‘Irmão, deixa-me tirar o argueiro que tens na vista’,
se tu não vês a trave que está na tua?
Hipócrita, tira primeiro a trave da tua vista
e então verás bem para tirar o argueiro da vista do teu irmão.
Não há árvore boa que dê mau fruto,
nem árvore má que dê bom fruto.
Cada árvore conhece-se pelo seu fruto:
não se colhem figos dos espinheiros,
nem se apanham uvas das sarças.
O homem bom,
do bom tesouro do seu coração tira o bem:
e o homem mau,
da sua maldade tira o mal;
pois a boca fala do que transborda do coração».

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