03 junho 2025

Da oncologia pediátrica e das adjectivações

Começo este texto sob o signo do receio: conseguirei transmitir o que quero sem ser desagradável ou injusto? Talvez não, mas não serei acusado de não tentar.

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Há cerca de 12 anos escrevi um pequeno ensaio para um curso que estava a tirar. O título era A Santidade, ou da perfeição das vidas quotidianas e eu escrevia a um dado momento:

Enquanto houver alguém que se disponha a lutar pela reposição da justiça, que perdoe ofensas, que rasgue um pouco do seu manto para cobrir a nudez do próximo, que se sinta desafiado à entrega gratuita e voluntária aos outros, que não desvie o olhar perante a miséria que confrange, que chore com a morte injusta, então o milagre conviverá connosco de mãos dadas. 

Enquanto houver alguém ao nosso lado que teime levantar o céu, no significado feliz que lhe dá o Prof. José Mattoso, que encontre no seu sofrimento um sentido para a vida, que saiba oferecer uma palavra a um velho abandonado ou uma mão a uma criança doente, que arrisque a sua vida pela vida dos outros, então a esperança de um mundo melhor mantém-se viva. 

Enquanto houver alguém assim, por menor que seja o número desses alguéns na multidão anónima de egoísmos, prepotências, comodismos, indiferenças, não perderemos a esperança, e assumiremos a santidade - ou a perfeição dos dias quotidianos - como uma possibilidade ao virar de uma esquina, numa fábrica, numa vizinhança, num escritório, num hospital, numa escola, numa família. Negar este caminho é trocar uma vida grande por um mundo pequeno - um mundo que será sempre pequeno de mais.    

O objectivo do texto era, acima de tudo, valorizar a santidade do quotidiano, a santidade dos pequenos gestos, mais do que a santidade proveniente dos milagres (o que quer que isso signifique para cada um de nós) que impressionam pela ausência de uma explicação lógica ou científica. 

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Vem isto a propósito do que se tem vindo a escrever sobre Luis Enrique, treinador do PSG (clube que ganhou muito recentemente a Liga dos Campeões) e sobre o facto de a sua filha Xana ter morrido com um cancro em 2019, tinha ela 9 anos. 

Por motivos óbvios, tenho uma solidariedade dupla para com Luis Enrique: sei o que é perder uma filha pequena e sei o que é perder uma filha pequena para um cancro. E o que eu sei saberão também os cerca de 15 Pais que entrevistei nos últimos meses, e que perderam filhos para um cancro. 

Gostei da homenagem que os adeptos do PSG fizeram ao treinador, exibindo nas bancadas uma imagem que se tornou de certa forma icónica: pai e filha no centro do campo a cravarem uma bandeira do clube - há 6 anos do Barcelona, se não me engano, agora do PSG. É uma homenagem bonita que, estou certo, se exibiria se o clube francês tivesse perdido por 5-0. De outra forma não faria sentido. Onde reside o meu desconforto? No que tenho lido (Linkedin, pois não estou em mais rede nenhuma) acerca de Luis Enrique, que é quase retratado com um herói porque, tendo-lhe acontecido o que aconteceu, conseguiu chegar onde chegou.

Para todos estes Pais, a morte dos filhos é um ponto de viragem; nada será como dantes ou, para citar a frase de uma mãe a uma filha que perdera a sua própria filha, tu nunca mais vais ser inteira (Público, 31 de Maio de 2025). Todos eles (mães e pais) tiverem de reinventar-se, fossem gestores, advogados, funcionários de uma autarquia ou empregados de limpeza. Ou mesmo treinadores de futebol. Todos eles tiveram de lutar para manter o equilíbrio mental, para aguentar relações, para suportar as saudades ou para combater a ideia de que não se aguenta uma dor destas. 

Repito: tenho o maior respeito humano pelo Luis Enrique, pois da sua vida profissional sei quase nada. Mas o homem que ele é não me merece mais respeito pelo facto de, 6 anos após o drama que lhe assaltou a vida, ter conseguido um troféu importante ou por, no momento em que soube do drama, ter suspendido a sua vida profissional. Esta é a vida dele, igual a quem, nos confins da Madeira, passa os dias numa repartição. O que me merece respeito é a dor das pessoas, mais do que aquilo que cada um faz com o que lhe acontece, porque há gente a quem falta ânimo, ou que gastam o pouco que têm a sobreviver. 

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Os grandes heróis, os grandes santos, nem sempre são os que se evidenciam pela visibilidade dos grandes gestos, mas pela perfeição do quotidiano - ou por uma tentativa, nunca desistida, de perfeição do quotidiano.

JdB

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