Nasceste hoje, mas há 31 anos.
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A semana que agora termina abalou Portugal e o mundo do futebol: Diogo Jota e o irmão, André Silva, ambos jogadores de futebol, morreram num brutal desastre de automóvel.
Um acontecimento deste tipo suscita um olhar imediato de todos: o drama familiar, as qualidades profissionais das vítimas, a falta que fará à selecção ou ao seu clube, a consternação de colegas, políticos, dirigentes, artistas de várias proveniências.
Um segundo olhar é sobre a precariedade da vida, um tema que me persegue desde há muito. No seu livro O ano do pensamento mágico (um livro sobre a morte súbita do seu marido) diz Joan Didion: [s]entamo-nos para jantar e a vida, tal como a conhecemos, acaba. Num certo sentido, esta frase poderia ser dita por todos os protagonistas da semana que passou: a massa humana que se condoeu com a morte dos dois irmãos poderia dizê-la; as famílias que perderam maridos, pais, filhos, primos, poderiam dizê-la. Mas também poderiam dizê-la o Diogo Jota e o André Silva que se sentaram para uma viagem de carro e a vida, tal como eles a conheciam, acabou. Ironicamente, vem-me à memória o verso de Fernando Pessoa: [a] morte é a curva da estrada.
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Deambular pela comunidade da oncologia pediátrica, como o faço há 24 anos, é conviver com a frase [s]entamo-nos para jantar e a vida, tal como a conhecemos, acaba. Há um tempo que começa quando os Pais ouvem o diagnóstico de cancro num filho pequeno - e esse tempo que começa marca o fim de uma vida, tal como a conhecemos; há outro tempo que começa - e que marca outro tempo que acaba - quando tudo se suspende num alívio, ou quando tudo termina numa dor. Todos estes tempos são marcados pela precariedade. O mundo no qual [a]inda víamos felicidade e saúde e amor e filhos bonitos como ‘dádivas vulgares' (Joan Didion, Noites Azuis) é um mundo precário, onde uma viagem de carro, uma saída de barco ou um exame que se manda fazer determinam uma tragédia imprevisível: não é suposto morrer-se aos 28 anos, não é suposto morrer-se aos 56 anos, não é suposto ter-se cancro aos 6 anos.
Para a precariedade da vida não há solução. Os desastres de carro não acabarão, as saídas de barco não acabarão, o cancro pediátrico não acabará. À ciência cabe desenhar carros mais seguros, barcos mais seguros, tratamentos mais eficazes. A nós, mortais na condição de Pais, filhos, irmãos, cônjuges, cabe-nos a preparação constante para a precariedade inevitável. Todos os dias teremos de pensar que este dia, este hoje, poderá ser o último para nós, ou para aqueles que amamos. E agir em conformidade. A morte do Diogo Jota e do irmão é um kind reminder (para usar uma expressão moderna) desta necessidade de vigilância afectiva. Por vezes hoje não é o primeiro dia da minha vida, mas hoje poderá ser o último dia da minha vida.
Termino este texto com uma frase que usei há um ano e que já tinha usado no ano anterior: não somos os mesmos, não seremos os mesmos. A frase aplica-se ao dia de hoje, mas de há 31 anos, mas também se aplica ao dia de hoje, na evidência dramática da precariedade da vida.
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JdB, em nome de todos os que te lembram.
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