A ler vários livros por causa do doutoramento, cruzo-me com esta frase de alguém que se refere a outro alguém que já morreu: rezo pela alma dele todos os dias.
O que significa rezar pela alma de alguém que pode ter morrido há 2 anos, ou há 20? Os mortos precisam da nossa oração para ir para o Céu? E o que acontece aos que não têm quem reze por eles especificamente? Confiam na generosidade de uma multidão anónima, porém crente? E o que acontece aos mortos que conhecemos, mas pelos quais nos esquecemos de rezar? E as crianças que morrem, estão também dependentes da nossa oração para encontrar o colo de Nossa Senhora? E a partir de quando se deixa de ser criança e já se requer a oração como uma espécie de bilhete de entrada na pátria celeste?
Estas e outras perguntas têm-me surgido à medida que vou escrevendo sobre o sofrimento e Deus, um capítulo claramente muito exigente do ponto de vista intelectual: conciliar harmoniosamente, e no mesmo texto, Camus, Dostoiévski, Santo Agostinho ou Carla Madeira (uma escritora brasileira moderna) é um exercício desafiante. Esta secção da tese pode ser uma faca, em que tudo depende de como a agarramos: à medida que leio e escrevo, releio e rescrevo, a minha fé não esmorece, torna-se mais clara, mais límpida, talvez mais discernida e, quem sabe, mais forte. Por outro lado, torno-me mais crítico do que fui ouvindo na catequese, nas missas de finados, nas orações pelas crianças doentes, na interpretação das curas aparentemente sem explicação racional, na imperscrutabilidade dos desígnios de Deus.
Se eu pudesse dialogar com o personagem do livro que reza todos os dias pela alma do falecido, talvez lhe dissesse que o foco da nossa oração deveriam ser os vivos, e não os mortos. Mal de mim se acreditasse que os meus mortos estão dependentes da frequência das minhas rogativas; e quero sossegar os que me sucederem: estou em crer que o céu me será franqueado - ou não - independentemente da quantidade de avé-Marias que rezarem pela minha alma. Rezemos, por isso, por nós e pelos que cá estão ainda. E talvez mesmo, quando lembrarmos os mortos nas nossas orações, que seja para eles nos ajudarem.
No livro Óscar e a senhora cor-de-rosa, de Eric-Emmanuel Schmitt, há um diálogo entre Óscar (uma criança com cancro) e a Vóvó-Rosa (uma voluntária) que deveria ser mencionado na catequese das crianças e nas conversas de adultos:
- Não, Óscar. Deus não é o Pai Natal. Só podes pedir coisas do espírito.
- Por exemplo?
- Por exemplo: coragem, paciência, esclarecimentos.”
Perceber este diálogo é perceber que Deus não cura as nossas doenças, porque também não as causa; é perceber que os milagres são os da alma, não os do corpo; é perceber que as curas inexplicáveis são fenómenos que a ciência ainda não sabe explicar, e que é melhor que Deus seja bondoso e não omnipotente do que omnipotente e não tão bondoso, porque há crianças que morrem e não se percebe porquê... É melhor compreender isto e inocentar Deus das desgraças que acontecem, do que achar que é Deus que dá as coisas boas, mas que há um mistério nas coisas más...
Digo eu, no fundo...
JdB
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