10 setembro 2025

Vai um gin do Peter’s ? 

 O QUE DISTINGUE OS HUMANOS 

Segundo a famosa antropóloga norte-americana, Margaret Mead (1901-1978), o indício primordial da presença humana no planeta – dado distintivo da raça humana, recuando ao tempo do Homo sapiens – não está nos avanços técnicos proporcionados pela produção de novas ferramentas para caçar e combater, por formidáveis que fossem, nem no processo de sedentarização, que se encontra na génese da vida gregária. Em contracorrente com os outros académicos, a célebre investigadora feminista, que trouxe a antropologia para a ribalta, considerou como primeiro vestígio de humanidade o gesto solidário mais antigo de que há prova. 

Celebrizou-se, logo nos anos 20 no século passado, nos trabalhos de campo em Samoa,
que deram origem ao seu livro «Coming Of Age In Samoa».  

Nesses primórdios de luta constante para extrair meios de subsistência no seio de uma natureza indomável, alguém partir um osso que afectasse a sua mobilidade era prenúncio certo de morte, pois o ferido costumava ser abandonado à sua sorte, para não pôr em risco o resto do grupo. Imperando a lei do mais forte e com maior destreza física, ninguém arriscava ficar a cuidar de um coxo. Ser ágil e veloz era condição sine qua non para escapar aos incontáveis perigos de um habitat hostil. Esse o motivo por que Mead qualificou de salto quântico na história da humanidade a descoberta rara de um fémur cicatrizado, pois redundava num acto heróico esperar quatro a seis semanas pela convalescença da perna partida, além de abrigar e alimentar o sinistrado. 

Um fémur partido e recuperado prova que alguém ficou a cuidar do ferido,
resguardando-o em lugar seguro, trazendo-lhe comida, cuidando da fractura.

Não por acaso, ao longo dos tempos, quem contraía doenças contagiosas – como a lepra, a peste, a cólera – era banido da comunidade, por motivos de saúde pública, vendo-se obrigado a subsistir sozinho ou com outros companheiros de infortúnio. De facto, ao longo dos séculos, têm-se registado práticas sociais impiedosas, quando a sociedade se sente ameaçada. No início dos tempos, tal como hoje, ir além da reacção espontânea de sobrevivência, demonstrando uma compaixão que comporta risco de vida, sempre foi e será um gesto maior, que se eleva acima do feroz ciclo da natureza, da mera subsistência natural.  

Foi, precisamente, esse gesto maior que Mead escolheu para datar o início da civilização humana, elegendo a descoberta arqueológica invulgar de um fémur de há 15 mil anos marcado por uma fractura cicatrizada, porque significava que alguém se sacrificara generosamente, correra perigo para abrigar um ferido. A resposta da antropóloga ao aluno, que a questionou sobre o primeiro acto humano conhecido na Terra, tornou-se viral (diríamos hoje) e antológica, até pela originalidade, bem nos antípodas da generalidade da academia sua contemporânea: 

«O PRIMEIRO SINAL DE CIVILIZAÇÃO

Há anos, um estudante perguntou à prestigiada antropóloga Margaret Mead qual seria, na sua visão, o primeiro sinal de civilização numa cultura antiga. Ele esperava uma resposta técnica — talvez ferramentas, cerâmica, armas. Mas Mead surpreendeu: "O primeiro sinal de civilização é um fêmur quebrado… e depois curado.

No mundo selvagem, um osso fracturado é uma sentença de morte. Um animal ferido não consegue fugir, caçar, buscar água. Morre sozinho. Porque na natureza, ninguém pára, ninguém espera, ninguém cuida

Por isso, um fémur curado é uma evidência poderosa. Alguém viu a dor. Alguém parou. Carregou. Protegeu. Alimentou. E ficou ali tempo suficiente para que o outro se curasse. 

Isso, para Margaret Mead, correspondeu ao início da civilização: o momento em que um ser humano decidiu que a vida do outro importava mais do que a própria pressa (e necessidade) para sobreviver, quando a compaixão superou o instinto, quando cuidar se tornou um acto de sobrevivência coletiva.» 

Adaptado de artigo de Remy Blumenfeld
publicado na Forbes a 21 de Março de 2020. 

Em sentido análogo, defenderam grandes teóricos de estratégia política que a força de qualquer grupo se mede pela força do elo mais fraco e pela sua aceitação do seio do corpo gregário. De certo modo, valida o raciocínio da célebre antropóloga, reconhecendo que o grau de coesão de uma comunidade humana também (mas não apenas) está correlacionada com o grau de compaixão. E vai mais longe, ao considerar que a capacidade de sobrevivência de uma comunidade – desde a escala micro, até à mais global – se pode medir pelo nível de integração dos mais débeis e improdutivos da sociedade. Porém, o mais interessante é tal conclusão não provir de um ímpeto magnânimo, per se, mas de uma observação lógica e pragmática, pois só as soluções mais justas resultam estáveis e duradouras.  

Retornando à famosa antropóloga americana – premiada com a Medalha da Liberdade (atribuída postumamente, pelo Presidente Jimmy Carter, em 1979) pela sua luta a favor dos direitos das mulheres, nas décadas de 50 e 60 do séc. XX –, é reconfortante ouvir de investigadores da craveira de Mead a ideia de que os humanos se diferenciam dos outros seres vivos pelo grau de empatia, interessando-se pelo destino dos demais, a ponto de se disporem a dar a vida pelo outro. 

Selo lançado pelos Correios norte-americanos, a 28 de Maio de 1998.

Transcorrido tanto tempo desde o Homo sapiens, constata-se que nem tudo mudou, nem sempre se avançou. Numa lógica naturalista (de certo modo egoísta) valorizar alguém tornado improdutivo, visto como um fardo, continua a ser anti natura. Mas na linha de raciocínio de Mead este olhar configuraria um primitivismo sub-humano, uma vez que antropóloga só reconhece humanidade em comportamentos elevados, supra natura, como proteger alguém diminuído sob algum aspecto. Curioso e interpelativo ser uma estudiosa das civilizações ancestrais a associar grandeza ao rosto humano.

Desafiante é garantir que esses traços distintivos da humanidade persistem, na nossa época tão competitiva e quantas vezes a parecer regredir para os critérios mais básicos da lei do mais forte! 

Maria Zarco 
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

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