24 outubro 2025

30 anos: somos o que fomos, o que somos e o que seremos *

Dois momentos de importâncias muito diferentes motivam a escrita deste artigo: o 31º aniversário da Acreditar, que corresponde ao fim de um ano de celebrações; e, muito provavelmente, o meu último texto para o SAPO enquanto Presidente da Acreditar. 

Vamos ao que importa. A celebração dos 30 anos de existência da Acreditar marca um momento no tempo – e nada mais do que isso. Em bom rigor, a diferença para festejar os 29 anos ou os 31 está no redondo do número. A relevância do festejo não está no algarismo, mas, de uma certa forma, no que sustenta o algarismo: festejamos uma vida, mais do que um aniversário; festejamos um percurso, mais do que um momento. A frase temos 30 anos, se não vier acompanhada do que é tangível (mas também intangível), é apenas uma frase publicitária, ou um convite para uma festa.

Como muitas pessoas que passaram pelo desafio da oncologia pediátrica – seja como doentes, seja como cuidadores – tomei conhecimento da Acreditar pelos piores motivos: o diagnóstico de cancro numa filha com 6 anos. Em 2001 / 2002 a associação era ainda uma entidade pequena, com poucos recursos financeiros ou humanos, a fazer o que podia e sabia – e que era muito! Tive a sorte de acompanhar (no sentido de espectador, mais do que de actor) o movimento estratégico que já era palpável em quem estava à frente da associação: temos de fazer mais e melhor, temos de nos profissionalizar. Esta frase é visionária e generosa: implica um olhar para o futuro e um olhar para dentro. E implica perceber que o tempo que chegou pode já não ser o nosso tempo. 

Na Acreditar, e com a Acreditar, mudou quase tudo em 30 anos – o logótipo, a sede, a presença na sociedade, os conhecimentos, as condições, a informação, o reconhecimento. Construímos casas, influenciámos a criação e revisão de legislação, acompanhámos milhares de famílias, reunimos com decisores políticos ou com administrações hospitalares, tornámo-nos interlocutores privilegiados, atribuímos bolsas de estudo e prestámos apoio psicológico, levámos crianças às suas viagens de sonho. Um dia a Acreditar adaptará o nome, mudará de presidente, ou de director-geral, ou de membros da comissão directiva. Mesmo quando muito mudar - para que sejamos mais eficientes no serviço à nossa comunidade - nunca poderemos dizer que mudámos tudo. O quase não é sinal de que falta mais mudança, mas sinal de que a inspiração inicial se mantém imutável: o espírito de serviço a doentes, famílias e sobreviventes; a dedicação ao nosso próximo através de gestos que nascem num coração, não num manual; a par do tangível – daquilo que se vê e mede – o toque de uma mão que revela disponibilidade interior e escuta activa.

Falar dos 31 anos da Acreditar é falar de uma imensa obra feita que se materializa, não só em mudanças importantes e visíveis, mas em sementes que ficam para o futuro. Somos o que fomos, o que somos e o que seremos. Festejar os 31 anos é, também, celebrar a certeza de um futuro melhor para quem ultrapassou a doença, para quem ouve o diagnóstico de doença cedo demais na vida, e para quem cuida de todos. Utilizando uma metáfora conhecida, estamos confiantes de que muitos se sentarão – felizmente – à sombra de árvores que plantamos agora; ou que plantámos há 31 anos, quando alguns Pais deitaram mão à empreitada. 

Durante este ano organizámos concertos e conferências. À volta de uma orquestra ou de uma mesa-redonda festejámos três décadas de existência e falámos do que nos pareceu mais importante para a comunidade para a qual existimos: o cancro longe de casa, o modelo futuro dos cuidados na oncologia pediátrica, os direitos dos Pais, ou os adolescentes e jovens adultos. Debater e cantar são duas faces da mesma moeda: constitui-nos como actor imprescindível na sociedade para todas as discussões sobre a doença, e a forma como afecta doentes, famílias e sobreviventes; e cria um sentimento de pertença que reforça laços e garante um futuro mais coeso.

Termino com uma nota mais pessoal.

Sou presidente da Acreditar há 18 anos, cargo que deixarei muito em breve. Ser-se presidente da Acreditar é, acima de tudo, um privilégio, uma parte do qual poderá parecer – e talvez o seja – egoísta. Enquanto Pai, o mundo das crianças ou jovens doentes com cancro era a minha casa; ao tornar-me presidente da Acreditar alarguei os horizontes e, ao olhar para o País, o meu mundo ficou mais vasto, humanamente mais rico, apesar dos desafios que vi em tantas famílias. Ao ter podido ascender a um cargo internacional, representando outras associações como a Acreditar, o meu mundo ficou ainda maior, e a sensação de urgência tornou-se mais evidente. Tomar conhecimento destes três círculos - casa, país, mundo - pode salvar-nos. Salvou-me.     

Em Junho desse 2007 já longínquo, quem me antecedeu deu-me um testemunho virtual; cabia-me guardá-lo e entregá-lo, quando o tempo chegasse, a quem me sucedesse. Não me cabe dizer o que fiz ou o que se conseguiu com, ou durante, a minha presidência. Na expressão o seu a seu dono, o dono é, seguramente, a equipa que levou a Acreditar onde está agora e para onde caminha. A mim, enquanto presidente cessante, só me resta agradecer o que os outros sabem que agradeço, e o que só eu sei, dentro de mim, que agradeço. 

João de Bragança,
Ainda Presidente da Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro. 
Pai, acima de tudo.

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