06 março 2013

Crónicas de um universitário tardio - A Morte

Um aprendiz só perde verdadeiramente o medo ao touro quando o enfrenta pela primeira vez, quando sente fixarem-se sobre si os olhos do animal e se apercebe da sua investida. É nesse momento decisivo, quando nada mais existe no mundo para além do homem e da besta, que o temor desaparece. Por semelhança de raciocínio, talvez seja preciso ver-se a morte para se perder o medo à morte.

Eu vi a morte, não num animal feroz, não num acidente iminente, nem sequer na forma de uma doença que nos habita e que a ciência não sabe curar. Vi-a numa mão pequena, numa vida pequena. Vi-a nuns dedos infantis que agarravam outra vida quando ainda não tinham largado esta. No meio estava a morte, naquela breve passagem de uma realidade que nem sempre dominamos para outra realidade em que nem sempre acreditamos. Via-se na dimensão física de um rosto sereno, na impessoalidade de uma parafernália tecnológica que nos revela números que decrescem até ao zero absoluto. Via-a no vazio árido cujo ar respirei, num deserto onde nada pode existir mas de onde tudo pode nascer.

Ver a morte, essa águia cujo grito ninguém descreve, é viver com ela na persistência da memória até ao fim do tempo, até ao momento em que alguém passa a ser o espectador da nossa própria morte. Só então a imagem se desvanece para dar lugar ao último abraço. É nessa altura que a morte se materializa no nosso próprio corpo, e não no corpo dos outros. O aprendiz, sonhador de tardes de fama, não mais esquecerá o dia em que enfrentou o animal que lhe coube em sorte, porque nunca se esquece o horror que vence a sensação de horror. Por isso, jamais se esquece a morte que vence o medo da morte. Por isso, jamais esqueci o momento em que vi a besta à frente.  
   
Olhar para a morte não é olhar só para a curva da estrada, lembrar o corpo desaparecido que dá lugar à saudade, conjugar de forma tão dolorosamente adulta a expressão nunca mais. Olhar para a morte, vê-la chegar, senti-la nuns dedos que perdem força, perceber que ela se instalou à espera de vencer e de ser vencida numa fracção de instante não constitui uma fatalidade, mas abre uma possibilidade. A morte para quem quase lhe toca pode ser só dor, mas pode ser muito mais. Pode ser um farol num nevoeiro persistente, pode ser uma oportunidade de redenção, pode ser a chave certa para a criação da beleza. Mas pode ser uma solidão dolorosa, a ausência de ouvidos que escutem, a saudade que se crava como um espinho persistente.


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Em Gran Torino, o personagem representado por Clint Eastwood deixa-se matar, perante testemunhas, redimindo-se de uma relação agreste com o mundo e revelando, com este acto, um último grande gesto de amizade. Não há maior amor do que dar a vida pelo próximo, e há quem o faça tomando a frase bíblica à letra. 




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Cristóvão palmilha montes e vales com o menino às costas. Vai exausto, mas sabe que a casa para onde leva a criança é já ali. Sabe que vai morrer, mas o menino é mais importante. O esforço do santo para levar o menino até casa do Pai é recompensado pela dimensão da fé. Que melhor morte podemos desejar do que aquela que nos permite ver, no instante anterior à despedida deste mundo, aquilo em que sempre acreditámos, mas para o qual tivemos olhos forçosamente incapazes? 

Então o bom gigante fez um prodigiosos esforço, e a cada passo, meio desfalecido, os olhos turvos, a cada instante lançando a mão para se arrimar, tropeçando, com grossas gotas de suor que se misturavam a grossa gotas de sangue, rompeu a caminhar, sempre para cima, sempre para cima. Os seus pés iam ao acaso, no desfalecimento que o tomava. Uma grande frialdade invadia todos os seus membros. Já se sentia tão fraco como a criança que levava aos ombros. E parou, sem poder, no topo do monte. Era o fim: um grande Sol nascia, banhava toda a Terra em luz. Cristóvão pousou o menino no chão, e caiu ao lado, estendendo as mãos. Ia morrer. Mas sentiu as suas grossas mãos presas nas do menino — e a terra faltou-lhe debaixo dos pés. Então entreabriu os olhos, e no esplendor incomparável reconheceu Jesus, Nosso Senhor, pequenino, como quando nasceu no curral, que docemente, através da manhã clara, o ia levando para o Céu.(1)

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Não se vê a morte impunemente. Ver algo que é comum à humanidade e ficar igual é uma impossibilidade, uma indeterminação humana. Ver a morte é ver aquilo que nos une a todos, qualquer que seja o ponto no globo onde vivemos, qualquer que seja o deus a quem pedimos e agradecemos. Ver a morte é querer falar da morte. Ver a morte é ver o fim último, mesmo que esse fim seja mais prematuro do que todas as mortes prematuras que acontecem ao nosso lado. Iona, o cocheiro, não tem ninguém a quem contar que viu a morte e ele sabe que precisa de falar disso, para que a morte não o mate a ele também. Iona não encontra ninguém, porque a obsessão da ligeireza da vida devora os ouvidos que deviam estar atentos, anula a certeza de que falar do sofrimento é, também, alumiar o sofrimento. E o sofrimento tem horror à luz, como a natureza o tem ao vácuo. 

... Precisa contar como o filho adoeceu, como padeceu, o que disse antes de morrer e como morreu... Precisa descrever o enterro e a ida ao hospital, para buscar a roupa do defunto. Na aldeia, ficou a filha Aníssia... Precisa falar sobre ela também...
... O cavalo foi mastigando, enquanto parecia escutar, pois soprava na mão do seu dono... Então Iona, o cocheiro, animou-se e contou-lhe tudo...(2)


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Nada há de mais bonito do que a música triste. Nada há de mais esplêndido do que a música que se compõe para lembrar quem morreu. É na lentidão das frases, na distância sublime entre dois pontos de música, na melancolia dos instrumentos, que a cada um de nós é dada a possibilidade de lançar os olhos para o infinito e, na morte que se recorda, sentir o efémero de tudo, a pequenez de tudo, a beleza de tudo. Compor um requiem é entrar em contacto com o divino. Imaginar um requiem quando se está frente a frente com a morte próxima é ganhar a certeza de que nada no mundo é inalcançável.



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Como morremos? Como olhamos para a nossa morte, para a morte dos que nos estão próximos ou dos que não conhecemos e que são um número numa estatística? Como morreremos? Lúcidos? Angustiados? Em paz com a vida? Certos de que mataremos as saudades num encontro já além? A morte é o nosso último grande desafio. Pensar nela e cantar a morte que me namora/já me pode vir buscar não é o desejo da partida, mas a certeza do sossego. Morreremos como vivemos. Ou como tentámos viver, porque tentar é já em si bastante.

Onde está Ivan Ilitch? Onde está a agonia, como a escreveu Lev Tolstói? Onde estão os homens olhando para trás, para o momento em que se fizeram homens? Onde está o arrependimento e o perdão? E a satisfação, se a houve, dos anos felizes? Os doentes sofrem e parecem não ter forças para pensar, colocar-se questões morais – e  já nem sequer parecem preocupados (é isto específico do nosso tempo?) com o paraíso, o inferno, o juízo final. Querem apenas um pouco mais de vida, querem um pouco mais de tempo para acreditar que o corpo vence; todos querem, com uma força desproporcionada, talvez delirante, continuar de olhos abertos.(3)

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(1) A Morte de Cristóvão (Eça de Queiroz)
(2) Tristeza (Anton Tchecov)
(3) Agora e na Hora da Nossa Morte (Susana Moreira Marques)

1 comentário:

  1. Querido João,
    Obrigada por nos fazer pensar na morte, dá outro sentido à vida! Faço minhas estas palavras:
    "Era importante falar mais vezes da morte. Ela está aí, sempre presente na vida de cada um, e é saudável saber encará-la, já que ninguém lhe foge! Ela é o avesso da vida. E, saber olhá-la e admiti-la, só nos pode dar força para viver e apreço pela vida. Evitar que as crianças vejam, toquem, a morte dos seus familiares, em vez de as defender, fragiliza-as, e não as educa na verdade."
    NÃO HÁ SOLUÇÕES, HÁ CAMINHOS, Vasco P. Magalhães, sj. Edições Tenacitas

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