22 fevereiro 2022

Crónica de um doutorando tardio

 

Igreja de Santa Maria, Marco de Canaveses

Igreja dos Clérigos, Porto

É-me fácil imaginar ou identificar uma igreja despojada; talvez melhor dizendo, é-me fácil classificar uma igreja como despojada, porque o critério que uso é o meu, não o dos arquitectos ou dos historiadores de arte. Não me parece haver uma escala de despojamento. Penso que as fotografias acima retratam bem os polos opostos de um mesmo contínuo: Siza Vieira, séc. XX vs Nicolau Nasoni, séc. XVIII. A Modernidade vs o Barroco.

Nas paredes da Igreja de Santa Maria, pintadas de branco, não existem imagens ou pinturas, nem mesmo pequenas referências, numéricas ou pictóricas, às estações da Via Sacra. São paredes grandes, despojadas de tudo.  Não vale a pena descrever o interior da Igreja dos Clérigos; a imagem chega.

“Vemos aqui também um aspecto inesperado (...): o contraste dramático entre a fraca iluminação da nave a abundância de luz para além dela, na parte oriental da igreja, proveniente das amplas janelas do tambor da cúpula. As possibilidades expressivas da Luz foram aqui conscientemente exploradas — uma nova invenção, “teatral“ no melhor sentido da palavra — para dar a IL Gesú uma concentração de efeitos emocionais mais forte que em qualquer igreja anterior.”

Embora a descrição acima se refira a igreja de Il Gesú, a casa-mãe dos Jesuítas, em Roma, a Igreja dos Clérigos, como boa filha do Barroco, segue a mesma aproximação. Já a Igreja de Santa Maria tem uma [a]bertura horizontal contínua, de 16 m de comprimento x 0,50 m de altura, com peitoril a 1,3 m do piso, ao longo da parede lateral Sudeste." À semelhança de algumas igrejas latino-americanas “onde há uma ligação viva com o claustro, ou com a rua, através dumas grades colocadas directamente nas naves laterais que ligam os aspectos cerimoniais que se passam dentro da igreja com a vida da cidade” Siza Vieira quis que esta “incisão horizontal” permitisse, a quem se senta, ver as colinas por detrás das urbanizações e, com isso, escolherem se querem concentrar-se na Missa  ou não. 

Hoje, numa conversa académica, dei por mim a ter de raciocinar sobre um tema inesperado: qual a relação da iluminação com a ideia de despojamento? Existe ou são duas dimensões que formam entre si um conjunto vazio? Poderemos dizer, como me foi sugerido, que a iluminação numa igreja despojada é importante porque ilumina a ausência de distracção? Isto é, é importante que os marcoenses vejam que não há nada para ver? E é esse o efeito emocional contraponto ao efeito emocional de uma iluminação barroca? É importante ver o vazio como é importante ouvir o silêncio?

JdB

2 comentários:

Anónimo disse...

Andei a recordar.
Na década de 1950/60 passei uns dias com a família num hotel [penso que se chamava Garb] em Armação de Pêra, numa rua junto à praia. Os quartos eram virados para o mar e os longos corredores de serviço para terra. Nestes corredores havia janelas horizontais no estilo daquela da igreja de Marco de Canaveses, mas menores. Por cada janela via-se as terras ainda não destruídas pela construção selvagem e eu ficava com a ideia de estar a ver um quadro rural pintado e pendurado na parede.
Parece-me que, agora, o edifício pertence à cadeia Holiday Inn.
Abraço

JdB disse...

Curioso. Parte reduzida da minha infância veraneante foi passada em Armação de Pêra, em casa de amigos parentes (por volta de 74). Bons tempos de praia, cigarros escondidos, amores desajeitados, danças em terraços. Mesmo que tivesse ido ao Hotel Garb - e estou certo de que fui - era muito cedo para perceber essas janelas. Voltei lá em 85 e já no séc. XXI, talvez e tive um refluxo gástrico com o que fizeram da terra.

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