12 novembro 2024

Poemas dos dias que correm

Paredão do Estoril, ontem pelas 7.30h da manhã

Biografia

Tenho de inventar a minha vida verdadeira,
está tudo desfeito, tudo por fazer, 
tenho de recompor cada minuto da vida 
e de inventar-lhe o sentido. 
Tenho de encher de sentido o que nunca teve sentido, 
inventar um sentido e pô-lo nas coisas do mundo. 
Dar-lhes esse sentido.

Nasci. Passei por muitas mortes.
E agora tenho de viver.
Viver como quem inventa a vida verdadeira
e a dá ao mundo, assim uma coisa do mundo.

Quero nascer de novo e saber como é que se faz
o ofício de homem com o sentido em si
e com um amor largo no próprio ofício,
quero saber como é o trabalho de estar vivo.

Tenho de inventar a minha vida verdadeira
como quem inventa uma casa para se habitar
num espaço deserto, num mundo perdido.

Herberto Helder, in Do Mundo (1994)

11 novembro 2024

Da curiosidade e do conhecimento

 Sou uma pessoa muito curiosa...

Esta frase, que todos já ouvimos muitas vezes, leva-me sempre a fazer uma pergunta a mim próprio: para que serve a curiosidade? Durante muito tempo alimentei uma convicção de que não pretendo abdicar, nem mesmo tendo ouvido gente culta a tentar-me convencer do contrário. Em bom rigor a tese não é minha, não me atiro tanto para fora de pé... A tese é a de que o conhecimento faz  - ou pode fazer - de nós pessoas melhores. Isto é, há uma certa relação directa entre o que sabemos e a tolerância. 

Há muitas formas de sermos boas pessoas: sendo bons chefes, bons vizinhos, bons Pais, bons cônjuges, bons amigos. O exercício das virtudes junto dos nossos mais próximos é uma condição necessária, ainda que não suficiente, para sermos melhores pessoas. Ora, a nossa humanidade pode provir de inúmeras fontes: da Igreja para quem for crente, da educação recebida em casa, do ambiente em que se cresce, da escola ou da rede social / familiar. Há, no entanto, uma fonte que muito contribui para a tolerância.

A Enciclopédia Católica Popular ensina-nos o que também pode ser a tolerância: [o] respeito pela liberdade e dignidade do próximo, procurando com­preender o que há de verdade nas suas diferentes formas de pensar e de agir, nomeadamente através do diálogo. Este respeito, esta procura da compreensão da verdade do outro, não se constrói apenas em cima do conhecimento, mas assenta - e muito no conhecimento. Não falo apenas do conhecimento académico, mas do conhecimento adquirido através do contacto com os outros, com a diferença de culturas, de geografias, de modos de vida. 

O conhecimento pode não ser mais do que um número de circo, a exibição de uma característica, como escrever-se com as duas mãos em simultâneo ou saber dizer as palavras ao contrário numa fracção de segundos. Na sua vertente mais fútil, o conhecimento é apenas o exercício de uma memória: sei muito porque me lembro de muito; e lembro-me de muito porque tenho uma memória muito boa. 

Ser-se uma pessoa muito curiosa pode não ser mais do que ser-se uma pessoa muito curiosa. O importante perguntar é o que se faz com essa curiosidade. Um dia expliquei a uma amiga chilena quem era Sto. Ireneu - e esse personagem tornou-se uma private joke nossa. Perguntava-me ela muitas vezes: para que me interessa saber quem era Sto. Ireneu? E eu respondia-lhe: imagina que estás um dia com uma pessoa chamada Ireneu. Num instante podes falar-lhe de quem era o bispo e doutor da Igreja Católica. E assim se quebra um gelo...

Identificar Sto. Ireneu encaixa-se na ideia da curiosidade. Sabe-se quem ele era porque se fixou quem ele era. No minuto em que se faz alguma coisa com a ideia - nem que seja, na sua versão mais infantil, pôr uma pessoa a rir - essa curiosidade tornou-se conhecimento. O conhecimento é a curiosidade em movimento, é o estabelecimento de um qualquer comércio humano. Ser-se curioso para consumo próprio é a gula sem o prazer sensorial - serve para quê?

JdB      

10 novembro 2024

XXXII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Marcos 12,38-44

Naquele tempo,
Jesus ensinava a multidão, dizendo:
«Acautelai-vos dos escribas,
que gostam de exibir longas vestes,
de receber cumprimentos nas praças,
de ocupar os primeiros assentos nas sinagogas
e os primeiros lugares nos banquetes.
Devoram as casas das viúvas
com pretexto de fazerem longas rezas.
Estes receberão uma sentença mais severa».
Jesus sentou-Se em frente da arca do tesouro
a observar como a multidão deixava o dinheiro na caixa.
Muitos ricos deitavam quantias avultadas.
Veio uma pobre viúva
e deitou duas pequenas moedas, isto é, um quadrante.
Jesus chamou os discípulos e disse-lhes:
«Em verdade vos digo:
Esta pobre viúva deitou na caixa mais do que todos os outros.
Eles deitaram do que lhes sobrava,

mas ela, na sua pobreza, ofereceu tudo o que tinha, 
tudo o que possuía para viver». 

07 novembro 2024

Poemas dos dias que correm *

Honolulu, Waikiki, Outubro de 2024

We will replace lost lovers 

Não vou perder tempo a procurar amores perdidos,
perdidos na adolescência, na praia,
na floresta, noutros olhos, noutras bocas, noutros corações,
vou ao funeral, levarei flores, as preferidas, três dias de luto,
vou guardar só as boas memórias, as memórias boas,
vou deixar doer até a dor desaparecer,
morrer à míngua como sem água uma planta num vaso,
vou visitar velhos amantes,
jóias sem par, de pôr e tirar,
brincos, botões de punho, anéis de pedras perdidas,
camas onde tenho sempre lugar,
corpos que me protegem em concha,
bocas que beijam os meus defeitos,
vou olhar com olhos em cio todos os habitantes da cidade,
e no olhar mais brilhante encontrar um novo amante,
a quem vou, uma vez mais, chamar amor
e amar, poro a poro, sem pudor e sem decoro,
como um dia amei os meus amores perdidos.

Raquel Serejo Martins

***

Realismo mágico

51 anos, 9 meses e 4 dias
foi quanto durou o amor em tempos de cólera,
enquanto eu, que ainda não apaguei 51 velas,
em tempos de prosperidade e bonança,
não consegui amar e ser amado,
por mais de uma década,
somados, os dedos das minhas mãos,
um amor adolescente,
dois casamentos desfeitos,
quase 100 anos de solidão.

Raquel Serejo Martins

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Poeta apresentada por mão amiga

06 novembro 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

 COMO UM FAMOSO ‘PIANO BRANCO’ SE ESQUIVOU AO COMUNISMO

A atribulada história do piano de cauda – da marca austríaca Bösendorfer, chamado “branco” pela raridade de ter mantido a cor clara da madeira original – espelha com pica as convulsões vividas na Europa de Leste, ao longo do problemático século XX. Ali se fizeram sentir com particular intensidade os efeitos da queda do Império Austro-Húngaro, no final da Primeira Guerra Mundial e a consequente alteração de fronteiras, que ainda hoje alimentam traumas na região. Seguiu-se a invasão nazi e a devastação provocada pela Segunda Guerra Mundial, especialmente encarniçada naqueles países. 

As ruínas deixadas pela guerra facilitaram a posterior conquista do Leste europeu pelo Exército Vermelho, primeiro com governos fantoches, depois com uma ocupação militar russa explícita. Sem a mínima liberdade de movimentos dentro do seu próprio país, as populações ficaram aprisionadas no lado errado da Cortina de Ferro. Metade vigiava, denunciava e assim subjugava a outra metade, mantendo um status quo de cárcere à escala nacional. 

Só a implosão do império soviético libertou do jugo russo aqueles povos acoplados ao Pacto de Varsóvia, devolvendo-lhes a soberania, os direitos de cidadania dos povos livres e perspectivas de prosperidade. 

As aventuras do “piano branco” confirmam a violência dessa sequência sanguinária, que varreu a Europa Central e a Hungria em particular, durante a maior parte do século passado. Depois de o Bösendorfer sobreviver aos nazis, que tinham instalado um quartel-general na casa dos Hubay, a família percebeu que o piano não resistiria ao regime comunista, recém-instalado em Budapeste, para tornar o país num satélite obediente aos ditames do Kremlin.  

Aperceberam-se de quanto a liberdade recuperada após a derrota de Hitler recuara drasticamente, logo que as movimentações partidárias pró-comunistas prepararam a entrada das tropas soviéticas, que não hesitaram em estender os seus tentáculos até à linha percorrida no caminho para o assalto a Berlim (em Abril de 1945). Restou aos Hubay fugir da sua pátria, antecipando o fecho radical de fronteiras, instaurado pouco depois. 

Sem condições para levar o portentoso instrumento musical, de que era herdeiro o artista plástico Andor Hubay Cebrian, ocorreu-lhe deixá-lo à guarda da Embaixada norte-americana em Budapeste, que o recebeu de bom grado, ciente do valor daquela peça feita por artesãos muito qualificados, ao longo de 6 anos. Num ápice, o Bösendorfer converteu-se na coqueluche daquela Missão Diplomática, que o estimou durante várias décadas. 

Quando a Hungria se libertou do jugo soviético e recuperou a independência (com eleições livres, em Março de 1990), grande parte dos bens e do património imobiliário expropriado (parcialmente pelos nazis e integralmente pelos comunistas) foi devolvido aos antigos donos. Nessa sequência, os descendentes do pintor Hubay contactaram a Embaixada dos EUA para reaverem o raríssimo piano. Para surpresa sua, foram precisos anos de negociações até ser acordada uma solução salomónica com a Embaixada, traduzindo-se na transferência do “piano branco” para o Museu de Musicologia de Budapeste, onde permanece.  

O famoso piano Hubay, que permaneceu na Embaixada dos EUA em Budapeste, por décadas, até à transferÊncia para o Museu de Musicoloia, a 6.FEV.2014.
Photo: da dta. para a esq.: Cultural Attache Dmitri Tarakhovsky, Laszlo Hubay, Public Affairs Counselor Karyn A. Posner-Mullen, Charge d’Affaires  M. André Goodfriend, and a representative of the Museum of Musicology with the piano (Embassy photo by Attila Németh) 

Quando fugiram à ocupação soviética da Hungria, os Hubay rumaram à Noruega, pátria da senhora Edle Astrup Hubay Cedrian (Noruega 1905-1989, em Portugal), que se tinha destacado pela elegância e cultura nos salões da elite húngara. Foi naquele país nórdico que Hubay recebeu um convite da Vista Alegre para ser Director Artístico e igualmente uma proposta para leccionar numa universidade norte-americana.  Sem vontade de deixar a Europa e querendo ganhar distância da perigosa URSS, a família optou por Portugal, onde ficou até ao fim dos seus dias. Aqui escreveu a mulher de Hubay, Edle, uma autobiografia – «Uma Vontade Indomável. De Budapeste ao Estoril» – onde conta as peripécias da família, começando pelas dificuldades vividas na Hungria do pós-guerra. Um par de páginas são dedicadas a Portugal. O seu testemunho interpelativo ajuda (creio) a perceber a história do país: 

Andor, Rozann e Edle - Noruega, 1952

EXCERTO DA AUTOBIOGRAFIA DE EDLER

«A sua fama [de Andor, o marido], entretanto, chegava além-fronteiras. Em 1952, recebeu, quase em simultâneo, duas propostas: a primeira vinha da Universidade americana de Pittsburg, e propunha-lhe uma cátedra de ensino de arte. A segunda, oriunda de Portugal, oferecia-lhe o lugar de director artístico da fábrica de porcelana Vista Alegre.

Quanto à decisão tomada, confesso-me totalmente responsável. Não queria, em circunstâncias nenhumas, ir para os Estados Unidos. Em Portugal, ao menos, estaríamos longe dos russos e dos comunistas…

Como é que eu posso descrever os muitos anos que vivemos em Portugal? Aprendemos a amar um novo país, ao mesmo tempo que nos apaixonámos pelos portugueses. No entanto, a nossa impressão era de que o tempo parara, no que dizia respeito ao Governo e à classe alta. Como se tivessem sido enfeitiçados nalgum castelo de uma Bela Adormecida. Se não tivéssemos já testemunhado o reverso da medalha na nossa dolorosa experiência de vida, talvez não tivéssemos dado pelo pequeno mal-estar que dormia por debaixo da superfície aparentemente tranquila. 

Edle em Olhão, 1952, numa série Produção de moda. Fotografia de Henry Clarke

Na fábrica da Vista Alegre, Andor iniciou, cautelosamente, um processo de modernização e melhoramentos. Mas esbarrou sempre com alguma hostilidade por parte dos proprietários. Como é evidente, não estávamos em situação – nem tínhamos esse propósito – de fazer uma revolução. O meu marido queria apenas melhorar algumas condições de trabalho. Criou-se uma situação um tanto incómoda entre Andor e a gerência da fábrica, e ele demitiu-se. Continuou, no entanto, ligado à parte artística até 1958, altura em que aquela fábrica já gozava de grande prestígio internacional.

Com a ajuda do nosso amigo Salvador Corrêa de Sá, Visconde de Soveral, fomos, então, viver para o Estoril. Andor ensinava desenho e pintura na Escola Americana, e também a filhos de alguns dos nossos novos amigos, e era treinador de futebol no colégio inglês St. Julian’s. Eu sei que ele sempre gostou muito de futebol, mas daí a ser treinador… isso confesso que me surpreendeu bastante!

Em 23 de Outubro de 1956, o povo húngaro subleva-se, em mais uma clara demonstração de repúdio pelo regime comunista que lhe é imposto. O mundo assiste, em desespero, à chacina de centenas de húngaros. Em Portugal, uma velada que reuniu milhares de pessoas desfilou pela baixa até aos Paços do Concelho, em apoio ao povo húngaro.

Andor fazia parte do grupo que apoiava o governo húngaro no exílio. Constantes telefonemas para Budapeste tornam-no suspeito. A PIDE vem buscá-lo para interrogatório e, durante três dias, a família não sabe nada dele. Uma vez mais, o seu amigo Corrêa de Sá, amigo de Salazar, vem em seu auxílio. Andor volta nesse mesmo dia para casa, conduzido num Mercedes negro com motorista. Risonho, conta-nos que foi, apenas, interrogado. “Comparada com os comunistas russos, a PIDE é um bebé de berço! – graças a Deus.”

Depois de ter feito o ensino secundário no St. Julian’s, Rozann casou em Oslo, em casa do meu irmão, numa festa que durou três dias. Um verdadeiro casamento cigano! O marido, o barão austríaco Giselbert von Schmidburg, era director de um banco, em Bruxelas, e foi para lá que eles foram viver. Lászlo, terminado o Colégio St. Columban’s, foi cursar gestão na Universidade de St. Gallen, na Suíça.

De vez em quando, em ocasiões especiais como o Natal ou a Páscoa, ou durante as férias de Verão, os meus filhos vinham a casa. Eram momentos inesquecíveis, de grande alegria. Por essa altura, estavam em Portugal outros refugiados húngaros e convivíamos muito com eles. O regente Horthy, a mulher e o filho sobrevivente, Nicky, a nora Illy, o irmão de Otto Habsburg, o sobrinho Joseph e Maria, sua mulher. Nossos amigos eram também os Condes de Barcelona e os seus filhos. O actual rei de Espanha, da mesma idade de Rozann, passava muitos dias em nossa casa.»

Excerto de «Uma Vontade Indomável. De Budapeste ao Estoril», 
Edição da Oficina do Livro, 2003; tradução 
do original inglês assegurada por Manuela de Sousa Rama.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

04 novembro 2024

Carta a um anjo

Foi hoje, mas há 23 anos.

*** 

Parece um começo de história humorística, mas não é: à volta de uma mesa estou eu, uma australiana, uma chilena e uma grega. A unir-nos, para além de uma amizade e de um voluntariado na mesma organização internacional, o facto de termos passado pelo desafio de um filho com cancro. O filho da australiana é um sobrevivente (para usar uma palavra do nosso léxico) que tem uma autonomia mais limitada; o filho da chilena é também um sobrevivente (que eu conheço, e que já é um querido amigo) que teve 3 ou 4 recaídas; é um recém-psicólogo, com uma especialidade em psico-oncologia. Por último, a grega e eu somos Pais enlutados (mais uma expressão do nosso léxico). 

À volta da mesma mesa falamos de religião. Todos fomos educados na Igreja, seja a Católica, a Ortodoxa Grega ou a Anglicana. Todas estas minhas amigas estão afastadas da prática, talvez pelos mesmos motivos: numa dada fase das suas vidas, a Igreja, a religião, a Fé, a ideia de Deus ou o clero, deixaram de dizer-lhes alguma coisa. O diagnóstico, a recuperação ou a morte de um filho pequeno com cancro não constituíram motivo suficiente para que se reaproximassem, muito pelo contrário. Talvez tenham rezado, naquele instinto primitivo de olharem para cima, onde sempre está o Céu e o Deus que nos é comum, a pedirem pelos seus filhos. Entradas na rotina do quotidiano, seja na vigilância atenta dos filhos, seja no luto que sempre fica connosco, perderam esse olhar vertical que nos liga ao Divino e permaneceram no olhar horizontal que nos limita ao terreno. Em todas elas o mesmo espanto, a mesma incredulidade, a mesma espécie de revolta mansa que é, tantas vezes, a justificação para um afastamento já existente: como pôde Deus deixar que isto tivesse acontecido? Em todas elas o mesmo pasmo quando lhes respondo: Deus nada tem a ver com isto

Dir-me-ão que quatro crentes à volta de uma mesa a falarem de fé ou de Deus não é uma amostra significativa. Mas se pensarmos que são quatro pais / mães de crianças com cancro, a amostra passa a ser significativa. Quem, de entre nós, tem o privilégio - até estatístico, se o quisermos - de encontrar um grupo tão semelhante na sua tragédia, na sua luta, no sentido que quiseram dar a tudo? Por isso a pergunta justifica-se: o que fez de nós e por nós a educação religiosa que tivemos na infância e juventude? Em que nos ajudou a enfrentar a pergunta - como pôde Deus deixar que isto tivesse acontecido? - cuja resposta não ouvimos, ou cuja resposta é manifestamente insuficiente para nos calar uma revolta possível ou para nos consolar um choro certo? A ideia de que Deus tudo pode, de que Deus é Pai, de que Deus recompensa se rezarmos muito ou se nos portarmos bem, de que os desígnios de Deus são imperscrutáveis e de que há milagres que salvam outras crianças, é suficiente? Mais do que isso: será essa ideia reconfortante - diria mesmo, pedagógica? É pedagógico levarmos à letra o Cardeal Gonzaga (A Ceia dos Cardeais, Júlio Dantas) no seu lamento por um amor de infância abruptamente ceifado: Deus, se ma quis tirar, p'ra que foi que ma deu? / Para quê? Para quê? A frase é bonita e poética, e isso seria suficiente, mas a realidade é outra: Deus não deu, e por isso Deus não tirou. 

Há 9 anos, aquando da morte injusta do Pe. Ricardo, com pouco mais de 40 anos, escrevi o seguinte:  não quero que me falem de vida eterna, da dimensão teológica da morte, da inevitabilidade que nos toca a todos, de Jesus Cristo que a venceu. Talvez gostasse que nos sentássemos e reconhecêssemos a nossa pequenez, a nossa tristeza, a nossa incredulidade - talvez até a nossa perplexidade ou mesmo o sentido de injustiça de tudo. Ontem, à hora a que escrevia, não queria palavras piedosas nem cheias de esperança num futuro de uma dimensão superior. Talvez quisesse que alguém me dissesse, cheio de uma humanidade frágil e reconfortante: a gente não percebe nada disto... 

Por essa altura eu lia A Peste, de Camus, e sentia bem fundo a passagem seguinte: [o] padre Paneloux recusava até as oportunidades que lhe permitissem escalar a muralha. Ter-lhe-ia sido fácil dizer que a eternidade das delícias que esperavam a criança podiam compensar o seu sofrimento, mas, na verdade, ele nada sabia. Com efeito, quem podia afirmar que a eternidade de uma alegria podia compensar um instante de dor humana? Conforta-me um padre que nada sabe, porque só os sábios têm dúvidas.

Para as minhas amigas australiana, chilena e grega (e sabe Deus se para tantas outras, de outras geografias) a religião (num sentido genérico) não as confortou, como não confortou a ideia que faziam (ou que tinham aprendido) de um Deus que tudo pode, tudo consegue, que faz milagres, que vence as doenças do corpo, que responde às nossas orações com manifestações tangíveis e visíveis. Eu tive mais sorte: à morte maior da minha vida correspondeu a consciência da inocência de Deus. À morte maior da minha vida correspondeu a consciência de que há tragédias que estão no domínio da Natureza ou no domínio do Homem; no domínio de Deus talvez esteja o que fazemos com o que nos acontece, como transformamos a nossa escuridão em luz para os outros, como encontramos um sentido para o que parece não ter sentido. À morte maior da minha vida correspondeu a consciência de que os milagres não são os do corpo, mas os da alma. A alegria de acreditar em Deus não está na crença de que Ele pode impedir a morte maior da minha vida, mas na certeza de que Ele me ajuda a enfrentar a morte maior da minha vida e com isso fazer qualquer coisa, por mais pouco que seja. 

J, em nome de todos os que te lembram.

03 novembro 2024

XXXI Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Marcos 12,28-34

Naquele tempo,
aproximou-se de Jesus um escriba e perguntou-Lhe:
«Qual é o primeiro de todos os mandamentos?»
Jesus respondeu:
«O primeiro é este:
‘Escuta, Israel:
O Senhor nosso Deus é o único Senhor.
Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração, com toda a tua alma,
com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças’.
O segundo é este:
‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’.
Não há nenhum mandamento maior que estes».
Disse-Lhe o escriba:
«Muito bem, Mestre! Tens razão quando dizes:
Deus é único e não há outro além d’Ele.
Amá-l’O com todo o coração,
com toda a inteligência e com todas as forças,
e amar o próximo como a si mesmo,
vale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios».
Ao ver que o escriba dera uma resposta inteligente,
Jesus disse-lhe:
«Não estás longe do reino de Deus».
E ninguém mais se atrevia a interrogá-I’O.

01 novembro 2024

Solenidade de todos os Santos

 Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
ao ver as multidões, Jesus subiu ao monte e sentou-Se.
Rodearam-n'O os discípulos
e Ele começou a ensiná-los, dizendo:
«Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados os humildes,
porque possuirão a terra.
Bem-aventurados os que choram,
porque serão consolados.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados.
Bem-aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus.
Bem-aventurados os que promovem a paz,
porque serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça,
porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa,
vos insultarem, vos perseguirem
e, mentindo, disserem todo o mal contra vós.
Alegrai-vos e exultai,
porque é grande nos Céus a vossa recompensa».

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