Diário de Amália, 28 de Dezembro
Começo amanhã o meu primeiro dia de trabalho no estabelecimento da Dra. Clara. Vou chamar-lhe Fábrica da Ilusão porque, no fundo, é disto que se trata - um estabelecimento fabril em laboração quase contínua onde se manufacturam delírios e enganos. É isto que os clientes procuram, como se em vez de quadros ou fotografias nas paredes se pretendesse um forro a espelhos enganadores que reflectissem algo diferente da figura que se põe em frente. A ilusão da aventura, do não compromisso, do amanhã que não existe, do anonimato, da transgressão, da pergunta que não sai.
Começo amanhã o meu primeiro dia de trabalho no estabelecimento da Dra. Clara. Vou chamar-lhe Fábrica da Ilusão porque, no fundo, é disto que se trata - um estabelecimento fabril em laboração quase contínua onde se manufacturam delírios e enganos. É isto que os clientes procuram, como se em vez de quadros ou fotografias nas paredes se pretendesse um forro a espelhos enganadores que reflectissem algo diferente da figura que se põe em frente. A ilusão da aventura, do não compromisso, do amanhã que não existe, do anonimato, da transgressão, da pergunta que não sai.
Despedi-me da empresa de representações onde fui chefe de departamento nos últimos 10 anos e, confesso, tive vergonha e preguiça de revelar a nova actividade, porque há explicações que abrem fossos entre os elementos de uma comunicação. O único que sabe é o Fábio, com quem passei estes últimos dias. Contei-lhe tudo numa manhã limpa e clara, o que me pareceu ser um bom indício para a minha própria necessidade de transparência. Senti que ele, com a sua generosidade de carácter, seria o único com quem poderia partilhar este manto pesado que uso voluntariamente.
Estávamos os dois deitados, e o sol entrava devagarinho pela abertura estreita dos cortinados, incidindo na cabeceira da cama através de um fio de luz revelador de uma finíssima poeira em suspensão. O Fábio enrolava-me uma madeixa de cabelo enquanto fumava um cigarro matinal, impregnando o quarto com um cheiro forte. Quando lhe disse do meu propósito, seguindo com os olhos uma pluma elegante de fumo, senti uma ligeiríssima paragem naquele momento de ternura, uma fracção de hesitação, como se a terra tivesse cessado momentaneamente os seus movimentos habituais.
- Porque vais?
- Porque quero mais. Ou se calhar quero diferente. Ou talvez queira apenas o choque da contradição, a brusquidão do contraste, o fascínio dos opostos. A minha cicatriz contra uns olhos verdes rasgados e lindos que hipnotizam um cliente, a minha perna defeituosa ao lado de uma figura esbelta e tentadora que entontece de entusiasmo. Realidade versus ilusão, porque foi esse o meu argumento para ser admitida. Foi esse o meu trunfo, a carta que atirei para a mesa qual jogador que está disposto a tudo – a ganhar ou a morrer, porque o empate é coisa vã, inútil, fraca e desnecessária. O empate, neste tipo de jogos, é a ignorância da História.
Nestes últimos dias circulei um pouco a pé pelas redondezas de minha casa, preparando-me mentalmente para este novo trabalho que inicia uma mudança radical na minha vida. Ainda há restos de Natal nos caixotes de lixo, nas montras, nos passeios, nos rostos das pessoas, no sorriso das crianças que agarram um jogo novo, na provocação dos adolescentes que usam uma roupa moderna com uma juventude insultuosa.
Virei ligeiramente a cara ao vento e senti que a cidade ainda cheirava a fantasia, a alegria, a generosidade, a redenção. Rodei ao de leve para o sentido oposto e o odor que me atingiu era o da miséria, da tristeza, da mágoa, da solidão. Repeti o exercício e, de todas as vezes, tive a mesma sensação: dois aromas diferentes e antagónicos, como se a minha face fosse o lugar geométrico do encontro e da mudança, o espaço onde realidade e ilusão se juntam, se confrontam, se digladiam, reconhecendo existências mútuas.
Amanhã receberei o primeiro cliente, e talvez seja um funcionário apagado de uma qualquer repartição periférica, protagonista triste de uma vida baça e mortiça. Encaminhá-lo-ei para os braços de uma mulher fogosa, entusiasmada, pronta a levá-lo ao céu da sua criatividade. A sensação que referi acima irá repetir-se seguramente: brisas de fantasia e certeza que me tocarão no rosto numa comunhão porventura impossível. Ao dizer:
- Boa noite, Sr. Ferreira, a Natália está à sua espera.
ou
- Até para a semana, Sr. Ferreira, prazer em vê-lo.
serei o porteiro que manipula o acesso ao devaneio ou ao verdadeiro. A mão do amanuense que me cumprimenta à chegada é a mesma com que me acenará à saída; é aquela mão que carimbará as certidões na penumbra de uma secção poeirenta e afagará um corpo que sorri para ele num deslumbre de volúpia. Mas o Sr. Ferreira irá reparar em mim - uma coxa portadora de uma cicatriz que lhe desfeia um olhar - e saberá que é aqui que tudo se joga: a fuga da realidade e o regresso a ela própria.
Cumpriu-se mais um dia.
MTS
Bom, isto começa a aquecer! Uma mulher e duas deformidades que a excluem, na vida real, vem resgatar a sua ração de estrelato num quadro de fantasia! Serão as suas imperfeições capazes de acender o desejo dos que a procuram? Força, Amália, que o teu nome tem aura e lastro, numa casa portuguesa! Continuarei a seguir-te o fado na prosa segura do mais recente ficcionista-revelação deste blogue, cuja identidade o seu anfitrião insiste em não querer revelar! Fica a sua singularidade narrativa, a assinar por extenso um nome escondido atrás de três consoantes! Mistéeeeeriooooo.... RF
ResponderEliminarDe facto, esta Lanterna Vermelha extasia, prende, faz-nos acelerar a leitura, numa ânsia urgente de descobrir mais sobre esta Amália, para depois voltarmos a ler, já saciados, prontos para saborear cada um dos detalhes que um excelente romance vai revelando.
ResponderEliminarPassou com distinção :-):-)
...atentos, motivados, deliciados e suspensos, ficamos até ao próximo capítulo.
ResponderEliminarBoas Inspirações!!
(como se fosse preciso pelo andar da carruagem : )