Este meu Largo está luminoso, ensolarado. Predomina o azul do céu e a claridade emana das fachadas; esvoaçam os pombos e os pardais depenicam por entre as pedras alvas da calçada, as árvores agitam-se pela força da Primavera que lhes dá vida e movimento. Na calçada desenham-se esguias sombras, os meus bancos retomam o seu sentido, as janelas estão escancaradas a sorver o ar fresco e límpido. As pessoas que surgem já não correm, caminham como em passeio. Enfim, tudo flui na simplicidade e ligeireza dos tempos amenos e primaveris que adoçam e pacificam.
Olho o meu Largo que suportou estoicamente o inverno e que agora se aconchega na ternura da primavera. Sinto-me bem, sinto-me alegre, apetece-me estar a desfrutar esta calmaria, esta serenidade.
Mas não posso ficar, tenho de partir, tenho uma agenda a cumprir. São horas de ir, são sempre horas para qualquer coisa.
Sinto raiva deste viver que não consente momentos de indolência, de recolher o sol, a luz, a cor e os sons que me aquecem, abraçam e embalam, suspendendo-me para me diluir neste quadro que me rodeia, sem mais ser do que uma parte dele e com ele, como se estátua aqui pousada fosse.
Mas não. Não sou, nem nunca serei mais do que inquietação em movimento, sempre em afazeres, sempre em acção, sempre ocupado, sempre em caminho.
A causa de não poder fazer parte de quadro algum, nem que seja por umas horas, está no excesso de coisas, de assuntos, de eventos, de pessoas, de compromissos, de empreendimentos em que nos deixamos envolver e que acumulámos nas nossas vidas.
Sinto-me presa de uma teia de aranha, em que falta sempre suprir um emaranhado de fios para alcançar a liberdade de estar livre de compromissos, de obrigações, de tarefas e prazos a cumprir.
Há sempre um mais a fazer, um ainda a realizar, um último toque ou retoque que impede, adia aquele tempo de dissolução, como inerte, num quadro qualquer de que eu queira fazer parte.
Por vezes apetece-me gritar pelo direito a ser coisa, sem outro fazer do que estar e ficar sem mais na paisagem que quero desfrutar. Ser pessoa cansa…
No fundo, do que estou a tratar é do direito, melhor, necessidade emocional, de existir tempo de contemplação na nossa vida, por contraposição ao permanente tempo de acção em que nos vamos esgotando, sem oportunidade para o primeiro.
Dir-me-ão que o segredo para a viabilização, para a conciliação destes tempos e modos de vida estará na selectividade, na escolha criteriosa das “acções” que assumimos e aceitamos, para que sobeje tempo para a contemplação que reclamamos, para a diluição nos quadros que elegemos, para fazer parte deles como paisagem.
Em teoria, esse segredo, essa recomendação, não terão contradição. Mas, na prática, a sua eficácia já não será tão evidente.
Com efeito, ser pessoa tem inexoravelmente, por inerência, uma série de qualidades (títulos) extra, que se adquirem automaticamente, e que limitam por natureza a possibilidade dessa selectividade.
O primeiro título inerente a ser-se pessoa é o de cidadão. Ora, ser cidadão importa uma série de trapalhadas, trabalhos e burocracias que, além de imensas, a respectiva necessidade de realização se renova logo que está concluída a última etapa (tratado o cartão de cidadão caduca a carta de condução, obtida o cartão de utente da saúde caduca o passaporte, e assim por diante, até ao infinito).
Ser cidadão consome agenda, porque o Estado acalenta uma relação com os seus cidadãos que exige contactos amiúdes e prolongados, havendo sempre, em cada mês, ou até semana, um assunto a tratar conexo com essa relação de cidadania.
Existem, ainda, os subtítulos de contribuinte fiscal e beneficiário da segurança social, os quais, todos sabemos, são assuntos constantes no dia-a-dia da pessoa.
O segundo título que acompanha a pessoa é o de profissional. Ser-se profissional hoje, seja do que for, é um sacerdócio, e não um modo de sustento. Aparentemente, e só aparentemente, somos todos absolutamente indispensáveis, preponderantes, importantíssimos nas organizações para as quais trabalhamos, sendo cada um conditio sine qua non para o respectivo êxito. Com este grau de responsabilidade, até sentimentos de culpa temos por gozar fins-de-semana ou férias, quanto mais não viver nos dias úteis obcecados e completamente comprometidos e disponíveis, a toda a hora, modo e para o que seja.
Como terceira inerência da categoria pessoa, temos o título de consumidores. Arrepia pensar nos trabalhos, diligências, esforços e angústias que consumir bens e serviços importam. Tratar de seguros, abastecimentos das redes públicas, televisão, telemóveis, computadores, e toda a demais panóplia de comodidades e utilidades que nos rodeiam é agenda. E que agenda! Há sempre um pendente, esta é uma constatação sem excepção, e, se incluirmos o banco….então não falhará um dia em que não tenhamos de cumprir qualquer diligência ou tarefa.
E poderia seguir enunciando os demais títulos inerentes à categoria pessoa, como seja o de proprietário, social, etc, etc., mas tal talvez não se justifique, porque já entenderam o meu pensamento sobre a pretensa liberdade de sermos selectivos na escolha do tempo que dedicamos à acção, para sobrar o necessário para a contemplação.
Lamentavelmente, a conclusão é que a pessoa, porque é, em simultâneo, cidadão/contribuinte/profissional/consumidor/proprietário/social/etc, etc, tem os seus santos dias preenchidíssimos para dar conta dos recados e incumbências destes títulos todos, pouco lhe sobrando para a almejada contemplação.
Parece-me irrefutável o que venho descrevendo – acumulamos dever fazer, sem oportunidade para o nada fazer. Mas, e aqui é um paradoxo, apesar de todos sentirmos este excesso de deveres, a verdade é que, inexplicavelmente, ainda complicamos mais as nossas vidas com voluntárias e suicidas sobrecargas de “deveres” que limitam, ainda mais, a nossa liberdade.
Exemplos não faltam: alimentamos dependências como seja a da (des)informação, da televisão, do cinema, do consumismo, ou inventamos necessidades que realmente não temos e que colmatamos com dispêndio da nossa liberdade e tempo.
Sabem, pode ser que não haja outra forma, que a realidade, sendo esta, não possa ser modificada, e que tenhamos de nos conformar., Mas dói, faz pena e até revolta que ninguém veja as árvores crescerem, apenas nos espantamos pelo tanto que entretanto cresceram.
Deixo aqui um desafio que aceito para mim: vou escolher uma árvore pequena e comprometo-me a diariamente gastar alguns minutos a vê-la crescer; vou quotidianamente contemplar esse pedacinho de natureza, em homenagem a toda a Natureza que a agenda me rouba.
ATM
Olho o meu Largo que suportou estoicamente o inverno e que agora se aconchega na ternura da primavera. Sinto-me bem, sinto-me alegre, apetece-me estar a desfrutar esta calmaria, esta serenidade.
Mas não posso ficar, tenho de partir, tenho uma agenda a cumprir. São horas de ir, são sempre horas para qualquer coisa.
Sinto raiva deste viver que não consente momentos de indolência, de recolher o sol, a luz, a cor e os sons que me aquecem, abraçam e embalam, suspendendo-me para me diluir neste quadro que me rodeia, sem mais ser do que uma parte dele e com ele, como se estátua aqui pousada fosse.
Mas não. Não sou, nem nunca serei mais do que inquietação em movimento, sempre em afazeres, sempre em acção, sempre ocupado, sempre em caminho.
A causa de não poder fazer parte de quadro algum, nem que seja por umas horas, está no excesso de coisas, de assuntos, de eventos, de pessoas, de compromissos, de empreendimentos em que nos deixamos envolver e que acumulámos nas nossas vidas.
Sinto-me presa de uma teia de aranha, em que falta sempre suprir um emaranhado de fios para alcançar a liberdade de estar livre de compromissos, de obrigações, de tarefas e prazos a cumprir.
Há sempre um mais a fazer, um ainda a realizar, um último toque ou retoque que impede, adia aquele tempo de dissolução, como inerte, num quadro qualquer de que eu queira fazer parte.
Por vezes apetece-me gritar pelo direito a ser coisa, sem outro fazer do que estar e ficar sem mais na paisagem que quero desfrutar. Ser pessoa cansa…
No fundo, do que estou a tratar é do direito, melhor, necessidade emocional, de existir tempo de contemplação na nossa vida, por contraposição ao permanente tempo de acção em que nos vamos esgotando, sem oportunidade para o primeiro.
Dir-me-ão que o segredo para a viabilização, para a conciliação destes tempos e modos de vida estará na selectividade, na escolha criteriosa das “acções” que assumimos e aceitamos, para que sobeje tempo para a contemplação que reclamamos, para a diluição nos quadros que elegemos, para fazer parte deles como paisagem.
Em teoria, esse segredo, essa recomendação, não terão contradição. Mas, na prática, a sua eficácia já não será tão evidente.
Com efeito, ser pessoa tem inexoravelmente, por inerência, uma série de qualidades (títulos) extra, que se adquirem automaticamente, e que limitam por natureza a possibilidade dessa selectividade.
O primeiro título inerente a ser-se pessoa é o de cidadão. Ora, ser cidadão importa uma série de trapalhadas, trabalhos e burocracias que, além de imensas, a respectiva necessidade de realização se renova logo que está concluída a última etapa (tratado o cartão de cidadão caduca a carta de condução, obtida o cartão de utente da saúde caduca o passaporte, e assim por diante, até ao infinito).
Ser cidadão consome agenda, porque o Estado acalenta uma relação com os seus cidadãos que exige contactos amiúdes e prolongados, havendo sempre, em cada mês, ou até semana, um assunto a tratar conexo com essa relação de cidadania.
Existem, ainda, os subtítulos de contribuinte fiscal e beneficiário da segurança social, os quais, todos sabemos, são assuntos constantes no dia-a-dia da pessoa.
O segundo título que acompanha a pessoa é o de profissional. Ser-se profissional hoje, seja do que for, é um sacerdócio, e não um modo de sustento. Aparentemente, e só aparentemente, somos todos absolutamente indispensáveis, preponderantes, importantíssimos nas organizações para as quais trabalhamos, sendo cada um conditio sine qua non para o respectivo êxito. Com este grau de responsabilidade, até sentimentos de culpa temos por gozar fins-de-semana ou férias, quanto mais não viver nos dias úteis obcecados e completamente comprometidos e disponíveis, a toda a hora, modo e para o que seja.
Como terceira inerência da categoria pessoa, temos o título de consumidores. Arrepia pensar nos trabalhos, diligências, esforços e angústias que consumir bens e serviços importam. Tratar de seguros, abastecimentos das redes públicas, televisão, telemóveis, computadores, e toda a demais panóplia de comodidades e utilidades que nos rodeiam é agenda. E que agenda! Há sempre um pendente, esta é uma constatação sem excepção, e, se incluirmos o banco….então não falhará um dia em que não tenhamos de cumprir qualquer diligência ou tarefa.
E poderia seguir enunciando os demais títulos inerentes à categoria pessoa, como seja o de proprietário, social, etc, etc., mas tal talvez não se justifique, porque já entenderam o meu pensamento sobre a pretensa liberdade de sermos selectivos na escolha do tempo que dedicamos à acção, para sobrar o necessário para a contemplação.
Lamentavelmente, a conclusão é que a pessoa, porque é, em simultâneo, cidadão/contribuinte/profissional/consumidor/proprietário/social/etc, etc, tem os seus santos dias preenchidíssimos para dar conta dos recados e incumbências destes títulos todos, pouco lhe sobrando para a almejada contemplação.
Parece-me irrefutável o que venho descrevendo – acumulamos dever fazer, sem oportunidade para o nada fazer. Mas, e aqui é um paradoxo, apesar de todos sentirmos este excesso de deveres, a verdade é que, inexplicavelmente, ainda complicamos mais as nossas vidas com voluntárias e suicidas sobrecargas de “deveres” que limitam, ainda mais, a nossa liberdade.
Exemplos não faltam: alimentamos dependências como seja a da (des)informação, da televisão, do cinema, do consumismo, ou inventamos necessidades que realmente não temos e que colmatamos com dispêndio da nossa liberdade e tempo.
Sabem, pode ser que não haja outra forma, que a realidade, sendo esta, não possa ser modificada, e que tenhamos de nos conformar., Mas dói, faz pena e até revolta que ninguém veja as árvores crescerem, apenas nos espantamos pelo tanto que entretanto cresceram.
Deixo aqui um desafio que aceito para mim: vou escolher uma árvore pequena e comprometo-me a diariamente gastar alguns minutos a vê-la crescer; vou quotidianamente contemplar esse pedacinho de natureza, em homenagem a toda a Natureza que a agenda me rouba.
ATM
ATM,
ResponderEliminarÈ tão bom ser pequenino,no nosso subconsciente admiramos tudo, à nossa maneira é certo, mas quando iamos passear, viamos tudo, até nas longas viagens de carro, tinhamos atenção às matriculas dos carros que iam à nossa frente, ou contavamos o numero de carros que o nossso condutor ultrapassava.
A vida de crescido é chata, e somos meros números, para que com o nosso trabalho, ou na falta dele engrossarmos outros.
Diz-se que o Homem deve na vida fazer 3 coisas, ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro.
ATM, não sei o que lhe falta, mas o livro, já o está a escrever....
Espero que a árvora que escolha para ver crescer seja um grande Carvalho, para o termos a escrever, pelo menos mais 50 0u 60 anos.
Vê mais números 50 ou 60.....
Até para a semana.....
É um exercicio que já faço há algum tempo, vêr as plantas a crescer !
ResponderEliminarE sem dúvida dá um bem estar fantástico.
Quando se quer há sempre um espacinho de tempo...
Um bj
não temos de nos conformar com nada, ATM. a vida são escolhas. com custos e responsabilidades. há pessoas que vêm efectivamente as árvores crescerem...
ResponderEliminarpcp
Esses são os papéis que todos representamos no nosso dia a dia. Faz, parte. É assim. A contemplação não se exclui em nenhum deles. Estou com o PCP, fazemos as nossas escolhas, e a falta de tempo é sempre uma boa desculpa, para a
ResponderEliminarincapacidade de contemplar e nos deslumbrar-mos com os outros e com o mundo.
ATM, quando nascemos não temos nenhuma responsabilidade, nenhuma tarefa, nenhum afazer, simplesmente somos. Com o crescimento e a idade adulta, vão-se acumulando todas essas responsabilidades de que fala, num crescendo inversamente proporcional ao tempo de contemplação, atingindo o seu pico máximo entre os 35 e 45 (calculo que seja o seu caso, tendo em conta a força do seu desabafo). A boa notícia, é que a partir dos 50, a vida alucinada acalma, cresce em nós essa enorme vontade da contemplação, da interiorização, do nada fazer e, como que por magia, o tempo começa a aparecer. Não desespere, a sua hora chegará :-) Aconteça o que acontecer, não deixe porém de escrever.
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