Saudosa madrinha do meu coração,
Espero que esta a encontre de saúde, que nós por cá todos bem.
Espero que esta a encontre de saúde, que nós por cá todos bem.
A cada dia que passa acrescentam-se minutos de luz à dimensão da jornada; o clima levanta-nos dúvidas, como se vivêssemos permanentemente com dois relógios; hoje chove e amanhã fará um calor de ananases, transformando o olhar que derramamos sobre o guarda-roupa numa indecisão que confrange; os pobres estão cada vez mais pobres e, segundo uma amiga que é erudita, a sua vida (a dos pobres, não a da madrinha) é um mistério.
Tiro os olhos do teclado, volto-os para o horizonte, e antevejo-lhe a frase:
- O menino quer despachar-se? Acha que a minha vida se compadece com esta peroração sobre assuntos vagos?
Tem razão. Mas, na distância que nos separa, e na ignorância dos climas longínquos, não sei se a devo imaginar a escorropichar um refresco no alpendre, enquanto as moscas zumbem em redor, ou se a imagine no seu chá preto, acompanhando umas bolachas com manteiga que se derretem numa prazer pecador.
Sabe, madrinha, hoje falo-lhe de preservativos e, antes de empregar o cérebro na argumentação e na reportagem, dou-lhe tempo para o grito que acompanha uma bengala cortando furiosamente o ar:
- O menino ensandeceu? Acha que isso são temas de conversa?
Pois é… Tem razão, adorada madrinha. Mas digo-lhe mais: há a intenção de se distribuírem, nos estabelecimentos de ensino, estes artefactos (que já tiveram outro nome, e eram vendidos exclusivamente em farmácias, provocando diálogos interessantes com o farmacêutico: - desculpe, tem camisas sem colarinhos? Não tem? Então dê-me uma sem mangas…). A distribuição prevê-se gratuita, sem que a expressão tendencial a antepor condicione o horizonte temporal do projecto.
Tempos houve em que a escola era um espaço onde se dispensavam informações de interesse questionável: as estações e apeadeiros da linha do Oeste, a vegetação do deserto de Moçâmedes, os afluentes do Tejo. A época é outra, e alguns locais de ensino tornaram-se arenas onde se luta pela posse de um telemóvel, onde se grava clandestinamente o que uma professora diz – normalmente o que se classifica como disparate, porque a fórmula resolvente não suscita interesse de maior.
Há uns anos – muitos, seguramente – uma espécie de riquexó motorizado vendia gelados de sabores indistintos e higiene duvidosa. A ASAE não existia, nem na mente do Sr. George Orwell, que não conseguiu ver para além de 1984. Perto do liceu que frequentei, um estaminé abarracado atraía fregueses com um marketing poderoso: se queres andar à tabela, compra no stand Varela. E a juventude masculina de então lá ia, na coscuvilhice de umas revistas ousadas e em segunda mão nas quais um cavalheiro, de seu nome Vilhena, representava as mulheres com peitos avantajados e lábios carnudos. Também íamos ver outros periódicos, mas não me recordo dos conteúdos…
São outros tempos, madrinha adorada. Esqueça a linda estação de Vila Nova da Barquinha, a Welvitchia Mirabilis, o efluente mais modesto do poderoso Tejo, o stand Varela convertido em penúria fiscal, o famoso ilustrador. O assunto do momento é o preservativo. Não se pretende partilhar saber, informação, cultura, responsabilidade – apenas distribuir um preservativo, para que a juventude de agora se entregue aos prazeres carnais e entusiasmantes sem preocupações que são minudências: os sentimentos, a importância das coisas, o momento e a pessoa certa. Há que dar asas ao desejo, garantir que a pulsão sexual dos jovens não é torpedeada, muito menos arrefecida, por sentimentos em desuso que castram um erotismo adolescente.
Aqui há uns tempos, pessoa de quem sou amigo respondia a uma filha que se preparava para uma dissertação sobre sexo seguro, afirmando peremptório:
- Cá em casa não acreditamos no sexo seguro, mas no sexo responsável.
Ingénua criatura, pai démodé, educador obsoleto...
Não preciso de esforçar a minha imaginação para vislumbrar a logística da operação: haverá máquinas distribuidoras? A entrega será a pedido, ou universal, gratuita e obrigatória, ao fim do sumário? Poderemos ressuscitar os tais riquexós motorizados, recrutando desempregados ociosos, formados em cursos rápidos (não carecendo de ser pós-laboral, o que reduz custos) para um argumentar convincente?
- Diga-me jovem? O que prefere? Gosta de sabores? O morango está a sair muito… Quer definir o tamanho? É para uma relação heterossexual ou homossexual? Lamento, não se aceitam devoluções… Certo, não sabe quem será a sua parceira de hoje, mas quer estar seguro. Faz muito bem. E a menina? Desculpe a pergunta pateta e descabida: é o seu namorado, ou alguém fortuito? Se bem que não seja relevante, o importante é evitar a doençazinha e a gravidez indesejável. Sim senhora, com 16 anos já tem uma experiência considerável…A minha filha engravidou aos dezassete, mas não havia nada disto. Agora sim, com este governo (ouvi falar no outro dia em socialismo iluminado, mas não sei se era para o Sócrates..) tudo é mais fácil. Sim, sim, teremos promoções. Se acha que vai ter dois parceiros hoje vá prevenida, menina. Os rapazes às vezes esquecem-se...
Beberica uma orchata ou um earl grey, madrinha? Opta pelo fresco que reconforta ou pela bergamota que perfuma? Ou queda-se, simplesmente, num espanto invulgar adornado com uma indignação desalentada? Antevejo-lhe a pergunta:
- E o amor, menino? Não se ensina?
Ora, madrinha… Actualize-se. O que está a dar é o preservativo gratuito. E o que tem sabor a morango sai muito…
Abraço-a terno e respeitador; repenico-a de beijos sonoros e belisco-lhe uma ruga sábia.
PS: não, não me esqueci: hoje é Domingo e eu não esqueço a minha condição de Católico.
JdB
Fantástico! A true good old JdB dissertation. Tem os ingredientes todos, todos!! pcp
ResponderEliminaractual, irreverente, sério, inspirador, com graça, preocupante, este seu texto JdB. Imagino a sua rica madrinha quase a desmaiar e a pedir que lhe tragam os sais ! :-)
ResponderEliminarPCP e MAF: obrigado pela visita. Na diferença de realidades de cada um de nós (filhos ou não, idades distintas) todos podemos fazer alguma coisa. Se não for para impedir a distribuição gratuita, que seja para "educar" os que nos estão próximos nos valores em que acreditamos. E a madrinha agradece...
ResponderEliminarBelo texto, cheio da sua ironia certeira, desinstaladora e desafiante. Parabéns pela inspiração!
ResponderEliminarBeijinhos
esperemos que esta carta fique entre nós J. há assuntos que não se levam a madrinhas. Que não elevam afilhados. mas que é de rir é. beijo J
ResponderEliminarA minha madrinha já ouviu de tudo, desde que me habituei a escrever do Zimbabué. Falámos de karaoke, vinhos, fusões, beldades africanas. Mas tem razão: este tema não se leva a algumas pessoas. Espera-me uma bengalada.
ResponderEliminarBj para si também.
...às madrinhas, temo que já nada as surpreenda.
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