Diário de Amália, talvez 1 de Outubro, dia internacional do idoso
Aparentava ter quase oitenta anos, embora dele o povo pudesse dizer que era enxuto de carnes. Tinha um cabelo grisalho ondulado e pequeno a cobrir-lhe uma cabeça bonita, direita, que nos mirava de frente, sem vergonhas nem sobrancerias. Uns óculos discretos, com aros finos de metal, interpunham-se entre nós e uns olhos azuis muito claros, da cor da água. Duas alianças de ouro no anelar esquerdo revelavam viuvez ou casamento duradoiro. Vestia umas calças castanhas claras com um corte bonito, uma camisa com quadrados pequenos e um casaco aprimorado de camurça. Quando quis ver as horas mostrou um relógio clássico, sóbrio, redondo, e que lhe assentava elegantemente no pulso. Tudo no engenheiro António Miranda (que se tinha apresentado sem título profissional) revelava distinção, riqueza discreta, educação. Uma das raparigas, mais dada a coisas do desporto - ou das memórias -, afiançou que ele tinha alcançado posições de destaque no ténis e na vela.
Cumprimentou-me amavelmente, e só uma pessoa muito experimentada como eu se podia ter apercebido do pequeníssimo espanto perante a minha cicatriz no olho e a minha deficiência no andar. Disfarçou imediatamente, revelando que tinha aprendido uma lição importante quando era pequeno: não se olha para as pessoas que são diferentes.
As raparigas entravam e saíam, cumprimentavam o cliente e faziam-lhe um sorriso. Estou certa de que entre todas perpassou uma ideia que as dividia: estar com um cavalheiro daquela idade – mas também daquela elegância -, era uma aventura ou o cumprimento exclusivo de um trabalho? Tenho ainda a certeza de que algumas pensariam, num misto de susto e piada menos própria: e se ele nos morre em cima?
A todas o engenheiro António Miranda cumprimentou com um sorriso, um levíssimo baixar de cabeça ou um aperto de mão suave mas firme. Elas viravam as costas, e sentiam que aqueles olhos azuis muito claros, que outrora se tinham fixado no topspin adversário de um court de ténis, ou no perigo de um refrega traiçoeira quando se navega numa bolina cerrada, as percorria de cima a baixo tirando medidas, calculando formas, adivinhando fantasias e desempenhos. Elas não resistiam e voltavam-se para trás para lhe lançar um sorriso, um piscar de olhos, um beijo assoprado. E talvez suspirassem por ele, para que lhes coubesse em sorte um cavalheiro rico que as poderia presentear com um regalo, além da experiência, ternura - e pouca exigência física.
Enquanto bebia um café fraquinho temperado com meio pacote de açúcar, o engenheiro António Miranda viajou comigo pela equipa de raparigas que anima esta Fábrica da Ilusão: quem eram, de onde vinham, o que faziam, que aspirações tinham, quais as características físicas mais dominantes, uma ou outra habilidade que as diferenciasse das outras.
Assim, nos quinze minutos seguintes entreguei-me a um exercício de guia turístico especialista em geografia humana, descrevendo pormenores que me pareciam importantes para uma decisão do cavalheiro. Falei-lhe da Eduarda que era invisual e se encantara com o homem mais feio que ali passara, da Joana que jogava o crapaud com mestria rara e da Olga que, licenciada em Literatura russa, encantava os clientes com citações perturbantes; descrevi características da Mary Jo, a americana que se dispunha à simultaneidade de dois clientes, da minhota Laura, da Carmen, a sevilhana que encantara um cego com umas mãos mágicas e da Gabriela, uma cadete da Academia Militar que, nuns exercícios teóricos, acabara derrotada pela mulher e pela filha de um oficial francês de marinha.
As raparigas iam e vinham, e eu questionava-me mentalmente sobre a escolha ideal. Descrevi a Honória, a moçambicana que recebera o pai crivado de balas e sem uso para o afecto de que precisava, a Joana, cuja simetria física perfeita excitava alguns clientes e a Georgette, que tinha das cartas de amor uma visão própria e carregada de mentira. O cliente sorriu à menção da Esperanza Morales que, vinda de Pipinas, na Argentina, dançava nua ao som de tangos dolentes, e de Carmelinda, natural de Bencatel, cujo sotaque cerrado provocava desvairos e olhos revirados num conde falido. Interessou-se por Gervásia, a beirã que tirava o palhaço do sério, e pela Solange e Rosário, que encantavam jogadores de futebol falhados ou homens sombrios de uma qualquer repartição de Finanças. Soltou uma gargalhada quando lhe falei de Yuni Siyu, a chinesa que fazia do trapézio uma volúpia circense.
Acabei a descrição e senti-me como alguém que sugere a outrem que faça uma escolha única, tendo como base uma quantidade imensa de opções boas e de recusa difícil.
- Quem quer que chame, senhor engenheiro? Quem é a rapariga com quem gostaria de passar a próxima hora? Estou ciente do embaraço da sua escolha, se me permite a expressão...
Aqueles olhos azuis muito claros, treinados no ténis e na vela, sorriram abertamente. Na minha intimidade não havia dúvidas quanto ao nome que ia sair daquela tômbola elegante.
- Gostaria de levar todas, se me fosse possível. Mas este inquérito algo deselegante tem um motivo importante. Estou a escolher uma rapariga para o meu neto Martim, com 16 anos, que está ali fora no carro. Já o meu avô fizera isso por mim, há mais de 60 anos. É uma tradição, sabe...
Cumpriu-se mais um dia.
MTS
Ahahahahah! E o Martim calado, claro, embora já iniciadíssimo pelas garinas da Kapital! Ou então muito tímido e gordo, com acne, aparelho nos dentes e um ligeiro atraso: «Ó avô, e se eu não conseguir o que é que eu faço?» E o avô António sorrindo, ligeiramente enervado, sem contudo se desmanchar, rodando os botões de punho: «Vá, Martim, não seja parvo, não envergonhe o avô e honre a sua raça! Em desespero de causa resta-lhe sempre o charme...»
ResponderEliminarLOL
Rita Ferro
Gostava de saber quem é que o avô escolhe para o Martim .. segue-se para a semana, MTS? 2º capítulo? Obrigada por mais um momento de fruição literária. pcp
ResponderEliminarCruzes credo, sou leitora fiel e assídua deste espaço e não tinha realizado a diversidade e a fartura de operárias deste estabelecimento. Fico á espera do próximo capítulo. Aposto na Joana e vivó suspense. Bravo.
ResponderEliminarMTS,
ResponderEliminarNa semana passada assustei-me, pois, a minha 2ªf. ficou vazia...
Espero saber quem o Avô, vai escolher e se o "piqueno", vai estar à altura.
Na minha modesta opinião o neto sabe mais do que Avó julga...
Mas tá bem, tradicção é tradicção.
Até para a semana, mesmo......
RF, PCP, Ana CC, Cris: agradeço a vossa visita. Esperemos pela semana que vem, para ver como se comporta o Martim? Acne? Surpeendente? Saberá muito? A ver vamos, como diria o ceguinho...
ResponderEliminareu cá só espero que o rapazinho não crie fastio :)
ResponderEliminarDalheGas: Agradeço a visita. Há quem espere que ele não crie habituação...
ResponderEliminarPois eu quando li este texto da primeira vez, que li com gosto crescente, 'caiu-me tudo' quando acabei...e esperei que a minha vontade de comentar passasse...mas não passou.
ResponderEliminarE passado o riso que me provocou os comentários, passei a sacudir o pó e o brilho da paródia, e fiquei com aquele nó inicial na garganta...e a alegrar-me por os meus filhos não terem um avô/pai/tio/... assim...e terem pela sua frente no futuro uma iniciação de acordo com as suas escolhas e livres-arbítrios...
E fiquei a pensar - como reflexo imediato - em tribos africanas, nos seus rituais de passagem à fase adulta, nas circuncisões a frio masculinas e nas mutilações femininas.
Tudo em nome de tradições, de comodismos, de falta de esclarecimento, de humanidade, de...
E fiquei a pensar no avô, no Sr.engenheiro XPTO, no seu 'pedigree', nas camadas de verniz e bronze, das idas ao golfe, dos courts de ténis, dos passeios de vela...que pelos vistos pouco lhe trouxeram além de uma rica vida...
e fiquei a desejar que a nova geração do Martim, pudesse mostrar ao querido e bem intencionado avô, que uma 'ida às p****', não lhe vai dar coisissíma nenhuma, e desejar 'não ter feito isso por ele', e que afinal talvez seja o avô quem mais precisa da generosa oferta de tanta e variada 'carne pra canhão'.
Tradition?
afinal...ainda é o que era.
a.
a.: agradeço a visita. Não sei o que fará o Martim, porque a juventude de hoje pode ser imprevisível. O que lhe posso garantir é que todos os personagens aqui retratados são fruto de uma imaginação umas vezes delirante, outras difícil e esforçada. Não é uma crónica de costumes - pretende ser puro divertimento. Volte sempre a esta lanterna vermelha com a riqueza dos seus comentários.
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