Hoje faço um percurso a contragosto. Deixo uma pessoa numa estação de onde partirá para uma viagem de três dias. Três dias que imagino devam equivaler à dureza dos oito anos aqui passados. O mais certo é não voltar a vê-la. Natasha, minha empregada, leal como um pastor alemão, deixa-me um buraco no peito. 58 anos, emigrada calejada já antes de cá chegar, caiu-me aos pés sem falar português, de livrinho de significados em punho e pedindo um ordenado miserável. Enquanto estudava e evoluía na nossa Língua eu colava papéis amarelos nos objectos passíveis de tarefa, desenhava a ideia, em traços tão naifs que só podem ter contribuído para o seu desempenho. Perante a minha total inabilidade gráfica foi inteiramente legítimo que Natasha não fizesse nada com rigor. E quando se esmerava acima da média, sabe Deus com que sacrifício, mandava-lhe uma mensagem em festa, o incentivo. Era sim, fraca, a qualidade do seu serviço, mas imprescindível mantê-la a trabalhar. Por isso, impingi-a a umas quantas casas amigas. Os meus argumentos sempre foram comovedores e demolidores, mas houve quem a despedisse. Precisamente, o meu patrão. “Onde desencantaste a mulher?! Quem te paga para agenciares domésticas do Leste? Tem paciência. Nunca vesti camisas tão mal passadas!”
Chegou ao fim a minha Natasha. Viveu num quarto alugado, aprendeu português, viu os meus filhos crescer, nunca se esqueceu dos meus anos, de pôr flores ao meu Cristo. Trabalhava doente, não queria receber nos feriados, lutou em vão para proferir correctamente o nome Zé Maria – ficou o Maria Zé. Sustentou a família toda na Bulgária, passou horas no SEF, trouxe as duas filhas, um neto e o marido, mas até cá viveu apartada deles. Terça, em Gabrovo, espera-a uma mãe velhinha e doente, o desemprego, uma conta bancária a zeros e o futuro do costume – incerto. Como a Natasha, há oito anos na Bulgária, sinto o mesmo abismo em Portugal. Uma empresa à beira da falência, um País que sem dó nem piedade me exige as coisas mais incríveis e uma profissão que morre a cada dia. Na Natasha, percebi que para sobreviver esquece-se a falta de forças, o passado e o que se foi, larga-se tudo e parte-se, até para limpar o chão que outros sujam. Das suas olheiras de insónia, saudades, cansaço e preocupação, saltava sempre um brilho para nós. Lágrimas, vertia-as longe. Nunca se aproveitou de mim, nunca aceitou almoço ou lanche, nunca me deixou descalça em oito anos. O meu dinheiro jamais teve um fim tão digno. E o que leva daqui a Natasha? As mãos vazias, o coração em chagas. O que veio fazer a Portugal? Só vislumbro a lição que me deu, o mais útil ensinamento para o meu amanhã – o seu exemplo de coragem, humildade e persistência.
DaLheGas
Querida DaLhe:
ResponderEliminarQue bom reconhecer nela e em ti a fragilidade, a humanidade, e a bondade..
Que bom reconhecer nela e em ti, a sabedoria, a força e a humildade..
Que bom reconhecer nela e em ti, a gratidão, a coragem e a amizade..
Que bom que acredito que o mundo não está perdido, porque as pessoas encontram dando, perdendo e perdendo-se.
O que a Natasha levou, só ela saberá..
esperemos que o tenha sentido assim tanto, como o que deu.
beijos,
a.
DALheGAS,
ResponderEliminarSão sentimentos como estes, que ainda me fazem acreditar que o Ser Humano é digno.
Tenho quase a certeza que quando deita a cabeça na sua almofada, pensa: "Hoje foi mais um dia, em que, falei com o coração"
Por vezes em certas situações, o que interessa uma camisa menos bem engomada...
Deus disse: "Amai-vos uns aos outros".
A Natasha, vai levar com ela a sua pequena coroa de espinhos.
Bem hajam as duas...
e lá foi a Nastasha na camionete. nunca a vi tão feliz :)
ResponderEliminarobrigada por a lerem queridas bloyerus
Extraordinária a comparação final com o que se sente neste país :-)) Excelente post, para variar! Beijos querida RF
ResponderEliminarDaLhe, a Natasha até pode ter ido de mãos vazias, mas levava o coração cheio.... cheio do carinho que você lhe deu, do respeito que você lhe demonstrou, como ser humano, da amizade que certamente cresceu nesses 8 anos. Quantas Natashas não têm a mesma sorte ? Quantas haverá mal tratadas, escorraçadas, abusadas pelas familias que "supostamente" as acolhem ?
ResponderEliminarBem haja, você, pelo grande coração que tem.
Conseguir ler as "entre-linhas"... excelente. És tão bonita "DaLhe" ;)
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