04 junho 2009

Beta

Antes de começar a escrever estas linhas, enquanto ajeitava o saco cheio de esferovite que o Diogo trouxe num dia em que resolvemos beber minis demais, Toma lá isto, está a ocupar o meu quarto todo, mas vê lá, é para a Rita, não é para ti, tinha na ideia escrever sobre o condão das manhãs em que o despertador se deixa substituir por um beijo preguiçoso e um bom dia da mesma família. Acontece que, instalado o estaminé, me veio à memória, e não fosse essa, de entre todas as faculdades do intelecto, a minha favorita, a Beta. Perdoem-me os que queriam saber mais das minhas manhãs, ficam prometidas para uma outra oportunidade.

A Beta era a mercearia da Rua Sá Carneiro, que fazia entroncamento com a minha rua, a Da Saudade, as mesmas que contornavam a escola. Tínhamos ali, portanto, uma conjugação de fenómenos demográficos e urbanísticos que faziam daquele cantinho da Vila Forte, um pequeno paraíso para se crescer, um lugar digno de recordação. Comecei a ir à Beta na idade dos joelhos, aquela em que ainda não sabemos bem andar, apenas nos limitamos a atirar as pernas para a frente, ao acaso, e conhecemos toda a gente pelo meio das suas pernas, ora na companhia da Matilde, que fazia o almoço e passava a ferro as camisas lá de casa, ora na da minha mãe. Desse tempo, além dos joelhos, só recordo o meu reflexo no espelho inclinado que estava por cima das frutas e verduras, lembro-me de olhar para cima e de ver um pequeno, novo de mais para usar aqueles óculos, sem uma sobrancelha, que ficava sempre no penso para os "olhos tortos", perdido numa confusão de sapatilhas, sapatos e chinelas, de todos os que por ali andavam nas suas compras. Mais tarde, do alto dos meus quatro ou cinco anos, comecei a ir lá sozinho, com encomendas simples lá de casa, Dois quilos de batatas novas Zezinho, e não deixe que o enganem com o troco, Vai à Beta e trás um pão caseiro Zé, corre antes que acabem, Ai que eu não tenho cenoura para a sopa! Zé!, só o meu pai me deixava sossegado, ele nunca precisou que eu fosse à Beta, nunca me lembrei de lhe perguntar porquê. Quando comecei a receber mesada, duzentos paus, acordei para toda uma riqueza de guloseimas, bolicaos e batatas fritas, até então vedados por força do dinheiro contado para os recados. O poder de compra veio com a primeira classe, antecipei-me rapidamente à matéria de matemática e sabia de cor, a mesada dava para quatro sumóis ou quatro bolicaos, para seis ou sete pacotes de batatas dos pequenos e para um bolso cheio de pastilhas gorila, era uma infinidade de alegrias em mil e uma combinações diferentes.

A Beta fechou já eu tinha pêlos no queixo, descobri numa tarde qualquer, já o meu mundo ia além do rio Lena e do Bairro de São Miguel, não resisti parar em frente à montra forrada a jornal amarelo e a recordar o tempo em que aqueles dois degraus eram um pulo enorme, em que o reflexo do vidro era o meu boné do Benfica, em que os recreios começavam numa correria louca, do lado de lá da rua, em busca duma gorila de laranja, que durava até ao recomeço das aulas, até ao caixote das pastilhas que ficava à entrada da sala, por baixo do quadro das tabuadas.

Quando brinco com a memória, gosto de guardar a infância separada por lugares, a Beta tem uma gaveta só dela.

Zé-do-Telhado

6 comentários:

  1. Este é o tipo de texto que, se nos apanha distraídos, faz-nos largar a chorar. Queres apanhar, ó estúpida? Não vês que eu estou sensível e que eu própria sou beta? Rita F

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  2. 200 escudos de mesada?
    Pois, já é da geração dos bolicaos..
    Mas está bem, o texto leva-nos a memórias da nossa infância.
    Lembrou-me a Vila onde passava férias.
    Tinha que saír da praia , ao meio-dia, para ir dormir a sesta.
    A pessoa que me ia buscar, comprava-me um gelado numa taberna do caminho, que era feito numa "cuvette" de gelo e o pau era um palito.
    Custava 3 tostões.
    Só deixo uma nota de rodapé, ainda sou quarentona......
    Portanto 200 escudos.......
    É tão bom ser adulto e ter boas recordações de uma boa infância!

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  3. É tão bom ser pequenino // ter Pai, ter Mãe, ter Avós // ter confiança no destino // e ter quem goste de nós.
    Quando já não se é pequenino, valha-nos a memória desses bons tempos. Zé, que ternura essa sua lembrança da Beta, mas não se livra de nos relatar as suas manhãs ... fiquei curiosa.
    Eu, que sou cinquentinha, tenho na memória uma semanada (no meu tempo não havia mesada) de 2,5 escudos. Uns aninhos mais tarde, quando comecei a fumar, um maço Ritz custava 5 escudos....

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  4. maf,

    Que engraçado temos algumas coisas em comum:
    - Eu também recebia 2,5 escudos, e quando os meus Pais me deram a primeira "ventoinha ou verdinha", isto a nota 20 escudos, foi um dos dias mais felizes da minha vida , custou-me horrores trocá-la.
    - Em 1973, um maço de Ritz, que também foi a minha marca, era 5$40 escudos. (1 pastilha gorila 0$05 tostões)
    - Também me lembrei da frase, do é tão bom ser pequenino, que penso que vinha nos nossos livros extraordinários da primária.
    Se bem me lembro....
    É engraçado hoje termos pensado nas nossas infâncias.
    E como eu odiava os "Robertos" na praia.
    Os gritos e a violência (acabavam sempre à traulitada uns com os outros) eram um horror.

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  5. cris, se caljar podíamos estar aqui horas a trocar lembranças comuns. Também eu não gostava dos "robertos", mas adorava a Bolacha Americana que vinha numas caixas de metal com uma roleta em cima, lembra-se ? :-)
    Zé, desculpe estarmos a utilizar o seu tempo de antena para estas trocas de galhardetes.
    Até sempre.

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  6. Ora, é uma alegria voltar atrás, apesar da disparidade nas décadas, o sentimento é o mesmo. Fico muito feliz por ter conquistado uns sorrisos com esta oportunidade que o JdB me concedeu. O tempo de antena de hoje é para as recordações, disponham. =)

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