08 junho 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, dia de todos os encontros.

Quando marcámos o encontro pelo telefone, num fim de tarde chuvoso e frio, o Sr. Jerónimo Antunes não manifestou disponibilidade para revelar a sua profissão. Foi de tal forma peremptório que imagino, até, que me tenha dado um nome saído da sua própria imaginação. De facto, nada obriga o cliente a revelar a sua verdadeira identidade nem a disponibilizar a actividade profissional. Há informações que não são obrigatórias e que cada um gere da forma que melhor entende.

O Sr. Antunes revelou-se um homem trivial: estatura média, cabelo grisalho a revelar entradas fortes, alguma barriga a denunciar sedentarismo, e uma idade que se situaria próxima dos sessenta anos. Vestia um fato cinzento-escuro, camisa branca e uma gravata azul-clara. De facto, as modas podem transformar em quase uniformes tudo aquilo que se veste.

No instante em que entrou no estabelecimento pressenti-lhe algum incómodo – ou seria apenas mistério? Olhou muito à volta, numa mistura de espanto e curiosidade, atentou fortemente nas raparigas que iam e vinham. Presumo que se tenha surpreendido com as roupas das nossas operárias, porque me perguntou com um ar de ligeira incredulidade:

- Elas estão sempre vestidas desta forma, digamos… normal? Não sabia.

Estou certo de que o Sr. Antunes imaginou saias demasiado curtas, botas demasiado altas, caras demasiado pintadas, cabelos demasiado ressequidos, figuras provocantes e muito próximas de uma vulgaridade pouco estética. Preconceitos, ou proximidade do que é real?

Ao telefone tinha solicitado a Joana Maria, tendo adaptado a sua agenda à disponibilidade da rapariga. Não resisto a relembrar parte da descrição que fiz dela:

A Joana Maria, uma rapariga lisboeta, bonita, alta e esguia, dona de uma elegância natural revelada pela forma de andar, de se sentar, de afastar os cabelos dos olhos, de conversar com os clientes. Apesar da sua licenciatura em Farmácia tinha concorrido ao Corpo Diplomático depois de meses insanos de estudo e pesquisa, persistindo contra uns pais que teimavam em deixar-lhe um estabelecimento nas avenidas novas.

Sorri, imaginando-a, com uma regularidade de relógio, a fazer companhia ao Dr. Guimarães e Costa, o gestor elegante que se interessara por esta jovem que jogava o crapaud suíço como ninguém. Agora, tocava-lhe em sorte o Sr. Jerónimo Antunes com quem travei um diálogo algo estranho, porque feito de interrupções, de suores frios que imaginei no cliente, de palavras gaguejadas, de silêncios incomodativos:

- Já conhecia a Joana Maria?
- Não, de todo. Não! Porque havia de conhecer?
- Como soube dela?
- Por um amigo… Se já lhe disse que não a conhecia.
- O Sr. Antunes joga crapaud suíço?
- Como? Crapaud suíço?

Não reproduzo mais do que esta pequena troca de frases, porque seria difícil descrever em palavras aquilo que só é visível pelos olhos e decifrável por uma intuição que, mesmo assim, tem falhas.

- E agora, o que faço?
- Se quiser ter a amabilidade de se dirigir ao quarto nº 3, a Joana Maria está à sua espera. Pede desculpa por não o vir buscar, mas está a arrumar umas coisas. Satisfação do cliente, sabe…

Vi o Sr. Jerónimo Antunes a desaparecer no corredor, abrindo um botão da camisa que de certo o sufocaria. Por momentos pensei que talvez ele próprio se desvanecesse quieto ao balcão. Não era, confesso, uma visão inédita. O nervosismo de alguns clientes sempre fora patente e compreensível. Há o medo de não estar à altura, a vergonha de se cruzar com uma cara conhecida, o enervamento de uma primeira vez independentemente da experiência que se tem.

Uma hora depois o cliente saía com um olhar vago, uns lábios perlados de suor, uma testa húmida, umas mãos que não disfarçavam o tremor. Sorriu-me envergonhadamente, e senti-lhe educação, mais do que amabilidade. Talvez o sorriso não fosse mais do que um esgar. Encostou-se ao balcão, e solicitou um copo de água. Hesitei, por um instante apenas, na motivação menos imediata do rogo: pedido de último condenado ou primeira alegria de um liberto?

- Então Sr. Jerónimo Antunes, sente-se bem?
- Sim… Obrigado.
- E o que tem a dizer-me da Joana Maria? Uma rapariga lindíssima, não acha? Espero vê-lo cá mais vezes. E estou certo de que ela também o desejará. Gostou dela?

O cliente abriu a boca e voltou a fechá-la. Uma intuição levou-me os olhos para o fundo do corredor, onde vi a Joana Maria - que fugira ao sufoco de herdar uma farmácia - linda e elegante como sempre. Num instante olhou para mim, no segundo imediato dobrava o corpo num soluço.

- Há muitos anos que gosto da Joana Maria e sabia que a encontraria aqui. Sabe, ela é minha filha.

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

5 comentários:

  1. MTS, esta é forte. O que será a dor dum pai com uma cruz destas? Ou será que lhe é fácil aceitar as escolhas da filha. Vender sonhos e prazer tem os seus mistérios. Talvez um dia o MTS nos brinde com algumas respostas. Do lado de cá e do lado de lá. Até para a semana.

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  2. MTS,

    Desta vez não deixou os créditos por mãos alheias, serviu-nos uma "vingança" fria.
    O que faltou na semana passada, nesta deu tudo.

    Fiquei sem fala....

    Agora, sendo esta a mais velha profissão do Mundo, todas as "técnicas do sexo", são filhas, irmãs, sobrinhas, netas e por vezes mães de alguém.
    Um Amor de Pai pode perdoar tudo ou quase tudo?
    Espero que pelo menos fique o Respeito.

    Até para a semana....

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  3. Por esta é que eu não esperava. Não esperava mesmo ! MTS ficou por esclarecer o "soluço" de Joana Maria. Seria soluço de alivio, pela aceitação paternal, finalmente ? Seria soluço de desespero e humilhação? Seria soluço de vergonha ? E o tremor do Pai, de onde lhe vinha ? Da emoção ou da raiva ? Resta-nos esperar, bem sei. Até para a semana !

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  4. Ana, Cris, Maf: agradeço a vossa visita. Tudo o que foi dito nos vossos comentários é possivel: a humilhação, a raiva, o respeito, a vergonha, o desespero, o amor, as escolhas. Como se desenrolará este caso? Boa pergunta...

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  5. Faltou assinar: MTS

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