Não consigo dormir, apesar de já ter tudo conforme o plano. A única coisa que falta é comprar o toucinho. Eu sei que todos eles adoram as tâmaras bem enroladinhas, numa trouxa de toucinho sem gordura nem plásticos, presa por um palito. Na mercearia garantiram que aquelas eram as melhores tâmaras de Lisboa, deram-mas a provar, sem desconfiarem que eu não sou de cerimónias, e o facto é que, confiando na minha memória, são as melhores que me passaram pelo palato.
Isto já foi no inicio da semana passada, porque como me disse o mais novo no ano passado, Talvez aí passe para o ano pai, este ano vamos para o sul de França, e o mais velho em Setembro, Sim pai, talvez aí passe no Natal, e eu queria ter tudo a jeito para os receber, tanto que resolvi não esperar pelo telefonema de confirmação e comecei a aprumar as coisas para a consoada.
Não foram só as tâmaras e o toucinho, fatiado com um milímetro. Perdi duas tardes inteiras à procura do melhor bacalhau, para o levar ao forno com cebola em redução de Porto Branco e umas batatinhas novas, que não é bem a tradição, mas é mais ao gosto da boca dos pequenos. Ainda ensaiei um arroz doce e umas rabanadas que, como doçaria, já não são bem do meu campeonato, mas que ao fim de duas tentativas me deixaram suficientemente orgulhoso e confiante para investir neles.
Ainda despertei para dia vinte e quatro com alguma esperança, sol de pouca dura. Afinal não vai dar este ano pai, ligou-me o mais novo à hora de almoço, Ouça pai, na passagem de ano não temos nada que fazer, eu e o mano até já conversámos isso, somos capazes de passar por aí para jantar.
Não quis ficar sentado a marinar tristezas, as tâmaras comi-as e o toucinho foi para o gato, que a minha saúde está bem mais velha e rabugenta que eu, e não perdoa nada. Hoje acabei a minha volta, facilitada pela experiência que ganhei na semana passada, fui buscar o bacalhau ao sítio certo, as melhores tâmaras de Lisboa à mercearia e, para tudo estar perfeito, só vou comprar o toucinho no dia trinta e um, que assim fatiado, com um milímetro, agarra os cheiros todos do frigorífico, inclusive o da comida do gato.
Ainda assim, não consigo dormir, apesar de ter tudo conforme o plano.
E eu tenho a certeza que eles vêm. Tenho a certeza.
ZdT
Estas suas palavras fizeram-me lembrar um dos mais pungentes exercícios poéticos que li, nestes anos mais recentes: 'Os Velhos', de Jorge Gomes Miranda (Edições Teatro de Vila Real, 2008). É um livrinho sublime, que nos desfaz em pedaços.. Às vezes, é preciso, para que dos destroços nasça uma coisa outra - quem sabe uma espécie de redenção.
ResponderEliminarGostei muito.
Flores e que 2010 nos mereça a todos e que também nós o saibamos merecer.
gi.
O seu texto deixou-me triste. Muito bonito, mas triste. Muito conseguida a ideia de falar sobre sentimentos através de um discurso centrado na preparação de uma refeição...Um bom 2010 para o seu personagem, filhos e para si. pcp
ResponderEliminarOs pais nunca perdem a esperança de ver o filho a casa chegar... mesmo quando sabem que isso não vai acontecer.
ResponderEliminarExcelente texto, João.
Obrigado a todos. Espero que este ano que começa venha cheio de oportunidades de melhorar o mundo, e que nós as saibamos agarrar.
ResponderEliminarGJ: o editor e dono deste estabelecimento agradece a visita mas dá "o seu a seu dono". Este texto é do Zé do Telhado, um bloguista que me dá o prazer da visita quinzenal. E, sim, concordo: é um excelente texto.
ResponderEliminarÉ verdade e eu já tinha ido atrás do link do Segismundo. Sabe-se lá porquê... ;))
ResponderEliminarGostei muito do que li, mais uma vez parabéns.