Da varanda eu via-o passar. Muito branco, muito loiro, cabelo à escovinha, duas pernitas a sair dos calções, ténis rotos, e sempre a garrafa na mão. Nem sei se chegava a um metro de altura. Para baixo, ia como um foguete, para cima, o peso do vinho dificultava-lhe a marcha. Um dia desci e entrei na tasca e espiei o miúdo. Com o tempo percebi que além dele havia mais. Eram uns cinco irmãos, com as mínimas diferenças de idade, abaixo dele. Meninas, meninos, todos trigueirinhos. Só ele saíra com aquele ar soviético, a mostrar as veias debaixo da pele e do sarro, olhos acentuadamente em bico.
Quando entrou em minha casa pela primeira vez, já os de leite tinham caído. Daí em diante esperava-me todos os fins da tarde na esquina, subia comigo, descia para avisar a avó, voltava, e só se pirava quando sentia a “carroça”, como ele dizia. Era a camioneta do lixo que passava pelas onze e meia da noite.
Depois conheci a avó, os irmãos, a prima, o tio. Viviam na mesma rua que eu, fazia-se um corredor estreito entre prédios, subia-se umas escaditas velhas e lá se dava com o covil. Nem as cortes de gado na minha aldeia eram aquela enxovia. Uma só divisão sem janelas, uma lâmpada fraca pendurada do tecto, uma torneira de cobre ao pé da porta. Mas nunca passei da soleira, de onde o Miguel chamava a avó, a mulher que sustentava o rancho, com os mesmos olhos de chinês, a mesma pele alvíssima, mas enrugada, a quem dizia, está aqui a senhora! Posso levar o Miguel de fim-de-semana? Queres ir? Ele decidia.
Quando saí de Alcântara a Segurança Social já tinha convencido a avó. Mesmo contra a vontade dos miúdos. A mãe vivia nos Olivais, tinha um companheiro, casa com condições, tinham que ir. Saíram eles, sairia eu meses mais tarde. Ficou a avó vendedeira de hortaliça na praça, o filho ganzado e a neta graúda de uma outra filha que vivia “muito bem”, em Espanha.
A última recordação é a de um sábado em que nos cruzámos por acaso, lá na nossa Alcântara, teria já 10 ou 11 anos. Correu até mim, corou de vergonha com a festa que fiz, com o abraço, e meteu no bolso a nota que lhe dei. É só para ti, ouviste? Os olhos eram estrelas.
Há dias, estacionei, e saía do carro quando um homem me interpelou. Você não morou em Alcântara? Morei. Você gostava muito lá de um miúdo... Talvez. Havia vários. Era o Miguel. O Miguelito? Sim, o russinho. Sou tio dele. Ah, homem, você sabe lá as vezes que penso nesse menino.
Tem telemóvel, 17 anos, a mesma voz vagarosa e risonha com que falava comigo enquanto eu fazia o jantar e partes gagas para eles se rirem. Com que ternura assumia tomar conta do meu filho Zé, uma meia dúzia de meses insaciável na paródia. Fomos tão felizes. E éramos tão pobres e a vida tão difícil de levar. Amanhã, meus amigos, vou ver o Miguel! Amanhã, meus amigos, vou ver o Miguel!
DaLheGas
Quando entrou em minha casa pela primeira vez, já os de leite tinham caído. Daí em diante esperava-me todos os fins da tarde na esquina, subia comigo, descia para avisar a avó, voltava, e só se pirava quando sentia a “carroça”, como ele dizia. Era a camioneta do lixo que passava pelas onze e meia da noite.
Depois conheci a avó, os irmãos, a prima, o tio. Viviam na mesma rua que eu, fazia-se um corredor estreito entre prédios, subia-se umas escaditas velhas e lá se dava com o covil. Nem as cortes de gado na minha aldeia eram aquela enxovia. Uma só divisão sem janelas, uma lâmpada fraca pendurada do tecto, uma torneira de cobre ao pé da porta. Mas nunca passei da soleira, de onde o Miguel chamava a avó, a mulher que sustentava o rancho, com os mesmos olhos de chinês, a mesma pele alvíssima, mas enrugada, a quem dizia, está aqui a senhora! Posso levar o Miguel de fim-de-semana? Queres ir? Ele decidia.
Quando saí de Alcântara a Segurança Social já tinha convencido a avó. Mesmo contra a vontade dos miúdos. A mãe vivia nos Olivais, tinha um companheiro, casa com condições, tinham que ir. Saíram eles, sairia eu meses mais tarde. Ficou a avó vendedeira de hortaliça na praça, o filho ganzado e a neta graúda de uma outra filha que vivia “muito bem”, em Espanha.
A última recordação é a de um sábado em que nos cruzámos por acaso, lá na nossa Alcântara, teria já 10 ou 11 anos. Correu até mim, corou de vergonha com a festa que fiz, com o abraço, e meteu no bolso a nota que lhe dei. É só para ti, ouviste? Os olhos eram estrelas.
Há dias, estacionei, e saía do carro quando um homem me interpelou. Você não morou em Alcântara? Morei. Você gostava muito lá de um miúdo... Talvez. Havia vários. Era o Miguel. O Miguelito? Sim, o russinho. Sou tio dele. Ah, homem, você sabe lá as vezes que penso nesse menino.
Tem telemóvel, 17 anos, a mesma voz vagarosa e risonha com que falava comigo enquanto eu fazia o jantar e partes gagas para eles se rirem. Com que ternura assumia tomar conta do meu filho Zé, uma meia dúzia de meses insaciável na paródia. Fomos tão felizes. E éramos tão pobres e a vida tão difícil de levar. Amanhã, meus amigos, vou ver o Miguel! Amanhã, meus amigos, vou ver o Miguel!
DaLheGas
DaLheGas,
ResponderEliminarQue bom texto. A amizade, faz-nos bem, o nosso coração prepara-se para os grandes momentos...
Será que algum dos intervenientes é pobre mesmo?
Até para a semana....
Que amor de história! Real? pcp
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