Levantava-se sempre pelas seis horas, qualquer que fosse a estação do ano. Era rápido no banho, no café e na torrada e saía a correr, porque havia que dar o pequeno-almoço à comunidade de idosos que vivia perto de si numa moradia que o tempo, a humidade e as desavenças familiares tinham arruinado parcialmente.
Pela hora de almoço sentava-se frente a uma sanduíche e a um sumo natural e redigia cartas, preparava balancetes, desenvolvia projectos e planos de negócio, gizava cronogramas com um rigor relojoeiro. Era o seu voluntariado em prol de uma associação de deficientes à qual se ligara por via do filho de um colega de faculdade.
Ao fim da tarde, quando o bulício da cidade anunciava o regresso a casa, Henrique ia distribuir jantares aos sem-abrigo a quem conhecia os nomes, as doenças e os passados – porque os futuros eram um exercício difícil de adivinhação. Quando o relógio da igreja onde dava catequese aos domingos assinalava a meia-noite, o jovem economista ainda arranjava tempo para navegar na internet – não nas redes sociais como fazia meio mundo, mas nos sites oficiais, procurando um programa comunitário, um prémio, um fundo, uma ajuda financeira. De facto, as crianças em risco mereciam-lhe toda a atenção.
Foi numa dessas noites frias e chuvosas, quando distribuía uma sopa de legumes fumegante a quem vivia na rua embrulhado em cartão canelado, que conheceu a Carolina. Trocaram um olhar breve, carregado daquela cumplicidade que une quem se dedica à caridade. As mãos tocaram-se fugazmente quando se organizaram para entregar tabuleiros, recolher canecas vazias, distribuir um par de meias quentes.
Três semanas depois Henrique dirigia-se às avenidas novas onde, num terceiro esquerdo elegante e discreto, vivia a Carolina, uma licenciada em Direito e especialista em fiscalidade num escritório de renome. Já se conheciam minimamente, tinham trocado experiências e opiniões sobre a solidariedade, a vacuidade das vidas, o egoísmo das opções, o serviço ao próximo, a importância do combate à pobreza e à exclusão.
Mas o jantar de hoje tinha um outro fim, mais carnal, mais afectivo, mais erótico. Afinal, eram dois adultos livres, solteiros, independentes, que se juntavam para gozar da companhia mútua e de uma noite previsível de amor.
Carolina estava deslumbrante, vestida com uma roupa que assentava tentadoramente num corpo que, não sendo perfeito, provocava a inveja de muitas colegas e o desejo de inúmeros clientes. Após o jantar sentaram-se num sofá e, pouco tempo depois, enroscavam-se num beijo longo, sensual, húmido, carregado de erotismo. Henrique correra-lhe o corpo com as mãos e ela entregara-se sem restrições, ambicionando também uma noite que se prolongasse sem fim.
- Espera, dissera ela com a roupa semi-desabotoada, deixa-me por música e acender umas velas. Levantou-se mas deixou-lhe outro beijo ardente, sentindo-lhe as mãos sem recuo.
Baixou as luzes, acendeu uma velas e colocou um disco na aparelhagem. Tinha-lhe dado as costas e lentamente – muito lentamente – tirara todas as peças de roupa enquanto Joe Cocker cantava, na sua voz característica, you can leave your hat on... A fiscalista estava integralmente nua e rodou lentamente, antevendo a emoção que provocaria no seu namorado ao revelar-se por inteiro – e pela primeira vez.
Henrique, o homem que servia os pequenos-almoços aos idosos, que construía business plans para associações de deficientes, dava catequese, distribuía sopas aos sem-abrigo e investigava fundos comunitários para crianças em risco dormia profundamente, com a boca ligeiramente aberta e uma mão solta de onde se penduravam uns óculos periclitantes.
Sabes qual é o teu mal, Henrique? - afirmou Carolina num monólogo frustrado, enquanto calava o Joe Cocker, apagava as velas e cobria uma nudez que só ela via – é que tu não fazes caridade. Tu sofres é de gula. E isso não é um pecado?
JdB
Mas que maneira original de desenvolver o tema "pecado da gula". Original e super frustrante, JdB!!! Embora ache pilhas a estes seus finais semi, ou totalmente, absurdos. Bjs. pcp
ResponderEliminarBom dia JdB.
ResponderEliminarMais um final fascinante e inesperado.
Será que este pecado da gula (excesso de caridade)não será, como diz Joe Cocker, "you give me reason to live - you give me reason to live.
Sweet darling - you can leave your hat on"
Espero ansiosamente pelo próximo pecado.
(julguei que tinha deixado um comentário hoje de manhã, mas não o vejo aqui publicado, por isso vou tentar reproduzir ... ou será que foi censurado ?? :-)
ResponderEliminarJdB, adoro esta sua forma de escrever, em que nos deixa presos, curiosos e empolgados ao longo do texto para nos deixar boquiabertos e desconcertados no final :-) É uma escrita quase irreverente, diria, mas cheia de conteúdo e riqueza. Descrito assim, este pecado até que é bem tentador, rs
Bem Mestre!
ResponderEliminarMuito bom!
Bj
pcp, ana cc, maf, arit: obrigado pela vossa visita e pelas palavras elogiosas com que perfumam esta caixa de comentários. Não conhecesse eu as signatárias e diria que elogiavam os pecados mortais, nesta versão que não pretende ser herética, mas tão só deixar um olhar diferente sobre algo que todos aprendemos - o que nos levará ao inferno caso não surja a reconciliação.
ResponderEliminarJá só faltam dois...
JdB
Na minha perspectiva, João, a Carolina é um caso agudo dessa doença (que é bem capaz de ser também pecado… dos veniais, concedo) chamada «só-ver-o-argueiro-no-olho-do-vizinho». O Henrique parece-me ser um rapaz de apetites muitíssimo sãos. Já a Carolina, ao revelar uma faceta «allumeuse», não tanto. Na circunstância, as coisas estavam bem encaminhadas, havia calor q.b. (no quadro de um apetite são). Mas a Carolina – esta, sim, ávida, gulosa – não quis só calor, quis ardentíssima canícula… E pronto: quem tudo quer, tudo perde.
ResponderEliminarP.S.1: Mas há, certamente, uma outra gula mais subtil – a do Henrique – cujo sentido me escapa. Estará relacionada com uma certa volúpia da caridade? É curiosa a tirada final da Carolina. Esperaria ela daquele encontro «caridade»? Ou seja, que o Henrique fosse também «caridoso» (e não só carinhoso) com ela? Em que conta se tem uma mulher que espera caridade do amante?
P.S.2: João, não espero que responda às minhas perplexidades, mas a verdade é que esta sua interessantíssima abordagem ao pecado da gula me levanta um milhão delas. ;-)))
Como eu gostava de escrever assim. Brilhante JdB.
ResponderEliminardeA
deA: os brasileiros usariam a expressão que eu copio: bondade sua. E muita bondade por este triste e diferente pecado capital.
ResponderEliminarLuísa: Você faz-me rir, sabia? E envergonha-me, porque o seu comentário é que devia ser postado, e não o meu texto. Mas não vou abrir votações... Sabe-se lá quem tem gula e quem faz caridade naquela parelha de gente abnegada. Nem o Cocker se safa - o Joe, não o cão. E percebo muito bem os seus argumentos. Se calhar a "gulosa" foi ela. Ou, como dizia não sei quem, a felicidade não é mais do que gestão de expectativas.