02 abril 2010

polaroids de figuras extintas

#5 - rogério

rogério,

a partir da prisão a que o mundo - e a falta de amor? - te condenou,
essa doença dos trópicos que te lançou
uma rede de malha fina e terrível eficácia,
a partir dessa espécie de não-lugar,
para sermos modernos e exactos na geografia descoordenada que nos resta,
peço-te que nos desculpes a distopia.

aos miúdos que te crismaram com cruel nome de fruto;
aos graúdos que não foram capazes, adivinho à légua;
aos médicos que não terão ido mais além do que atenuar
o que só tem redenção cósmica se invertido aqui na terra;
ao mundo que te negou oportunidades devidas,
abalando, até hoje, para parte incerta;
a mim, que não sou ninguém, nem mereço mais do que
qualquer outro homem que vira costas ao seu semelhante,
(mesmo que este 'virar costas' seja metafórico
e não corresponda à tradicional equação de um espaço num tempo);
e a ____.
(ia escrever quatro letras, mas não fui capaz.)

vês, rogério, a matéria de que somos feitos? cobardia e siga a vida,
raio de gente esta em que nos transformámos.

no dia em que te vi, já lá vão uns anos valentes,
tinhas um carro com tuning - uma coisa que me repele, devo dizer-te,
e um corpo ainda jovem com umas muletas já velhas,
numa estranha rima desengonçada,
como o teu andar doente,
espasmódico (como o ritmo quebrado desta porcaria de poema).

achei, nesse dia, que as jantes douradas do teu carro eram afinal lindas,
contra o azul eléctrico do capot - e ambos recortados contra o céu da beira alta.
até dos apliques - ailerons, ponteiras de escape, eu sei lá que mais - gostei.
emprestavam uma estranha dignidade ,
ao carro e ao rogério que conheci em menino, transformado ele próprio,
num homem-maquinizado.

pensando bem,
talvez não seja beleza a palavra certa,
talvez a palavra certa seja ironia
- a única resposta possível que te deixámos,
eles e eu, todos nós, aqui em baixo,
mais aquelas quatro letrinhas que não ouso dizer,
ali mais em cima.

um homem kitado, conduzindo, em dificuldade,
um carro dourado, feérico, eléctrico,
jantes douradas e agonia movida a gasolina sem chumbo,
uma anedota motorizada largada ao vento,
como aquelas piadas de mau-gosto
que alguém sempre sopra em jantares sociais
(e todos tentamos evitar escutar, apesar de estarmos lá).

o que eu agora gosto do tuning, rogério,
dessa metáfora feita de horsepower,
como se fosse um puro sangue no asfalto,
brincando com a identidade automobilística
e a possibilidade humana.

é assim, rogério.
ser duro não chega. ser mole não alivia. ser justo, talvez.. o quê?
é assim, rogério.

é assim.
mas não devia ter sido.

gi.

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