Albano nasceu no dia 2 de Novembro. Nunca a sua família pensou que o dia de nascimento pudesse ser um prenúncio da vida que ele havia de levar.
Ao contrário da maioria dos bebés, Albano nunca chorou por ter fome ou sede, nunca deu gargalhadas com o chocalhar de chaves à frente dos olhos e, durante toda a sua meninice, nunca fez asneiras dignas de registo. Na verdade, ao longo de toda a sua vida nunca fez nada digno de registo. Onde quer que estivesse passava despercebido, e só quem o visse, sentado e calado, dava conta de que ele existia.
Na escola aprendera a ler sem fazer barulho, e a fazer contas de somar e subtrair de cabeça, para não ter de pensar alto. Quando chegou a altura de escolher o futuro académico optou por um curso de linguística, com especialização em latim. Escolheu o latim, não por interesse científico, mas porque com uma língua morta o risco de encontrar alguém que a queira usar como via de comunicação é menor.
Depois da formação académica arranjou emprego numa editora especializada em dicionários. Dedicou o resto da sua vida a estudar a etimologia das palavras começadas por zê.
Não deixou descendência, nunca escreveu um livro nem plantou uma árvore. Do ponto de vista da filosofia oriental pode afirmar-se que não foi um homem realizado.
Teve sempre uma atitude de espectador relativamente à vida, e esta filosofia ganhou ainda mais força quando descobriu a razão pela qual era celebrado o dia 2 de Novembro, o seu dia de anos. A mãe explicara-lhe que o segundo dia do décimo primeiro mês era conhecido como o dia de finados, que em todo o mundo se rezava pelos que tinham morrido e que se lembravam os que já toda a gente esquecera.
A partir desse momento apercebeu-se de que no mesmo dia se recordava o seu nascimento e a morte de outros. Ainda para mais não era uma morte qualquer. Era uma morte anónima, dos que não têm nome. Este facto afectou-o de tal maneira que passou a confundir o seu nascimento com a morte dos que não têm nome. Dentro da sua cabeça, dois acontecimentos passaram a um. Isto levou-o a assumir, ainda em vida, o anonimato da morte celebrada no dia do seu nascimento.
Foi ainda mais longe, e passou a ver, nesta coincidência de datas, uma profecia: havia de morrer no mesmo dia em que nasceu. Para ele era o desfecho lógico da sua vida. Uma vida anónima leva a uma morte anónima, a do dia 2 de Novembro.
Todos os anos, na noite de 1 de Novembro, quando fechava os olhos para dormir, pensava que talvez não mais os voltasse a abrir. Mas este pensamento fatalista não o assustava, e mergulhava num sono do qual poderia nunca mais acordar.
O único pormenor de que se tinha esquecido era que, numa vida anónima e da qual era apenas espectador, não havia ninguém para dar pela sua falta na manhã em que não acordasse. Não havia ninguém para o procurar quando ele deixasse de aparecer. Não havia ninguém para o encontrar morto no seu dia de anos.
SdB (III)
Trágico-cómico e maravilhosamente bem escrito e inventado. Lembra-me muito o dono deste estabelecimento. No estilo e na imaginação. Porque será? Obrigada. pcp
ResponderEliminarTrágico-cómico e maravilhosamente bem escrito e inventado. Lembra-me muito o dono deste estabelecimento. No estilo e na imaginação. Porque será? Obrigada. pcp
ResponderEliminarestes Albanos são os tais que ja morreram e ainda não sabem. Fico contente porque o autor deste escrito mirambulástico, percebe bem que ver a vida passar ao lado, também é pecado.
ResponderEliminarAdorei, beijos