28 fevereiro 2011

Vai um gin do Peter’s ?

Não sendo nada óbvio que um jovem príncipe gago e hiper medroso ofereça a Hollywood um argumento de sucesso, o facto é que «O DISCURSO DO REI»(1) é um filme já aclamado por multidões. Porque será, para além dos excelentes desempenhos onde Colin Firth sobressai?

Creio que vários elementos positivos convergem nesta narrativa, justificando tamanha popularidade, muito para lá da excelente reposição da época ou do glamour da vida de corte, bem pouco filmada. Aliás, o espaço mais visto até é a clínica de um talentoso terapeuta da fala, improvisada numa subcave obscura de Londres. O próprio elevador acatitado dá nota da falta de sofisticação do prédio e do bairro modesto onde Sua Alteza Real iria passar boas temporadas. E aí arranca a história no sentido de que um novo horizonte, inimaginável mas possível (aliás, verídico), se franqueou generosamente a quem tanto precisava de apoio de vária ordem.

Um passo atrás para se desbravar melhor a arquitectura de um argumento: claro que a narrativa começa pela exposição do problema – uma disfunção clamorosa para um príncipe, votado a um futuro quase de clausura social para se proteger dos olhares (e ouvidos) do mundo. Pobre menino rico!

O príncipe

O alterego no filme

Valia-lhe, o que não é pouco, o apoio incondicional da que veio a ser conhecida por Rainha Mãe, que nos recuados anos 30 era, simplesmente, a mulher do príncipe gago – o Duque de York.

Esgotadas as buscas incessantes (e algo humilhantes) de ajuda nos consultórios dos especialistas conceituados, acabaram por ceder às solução de recurso, nada ortodoxa e com o desconforto do vão-de-escada, neste caso do bas-fond, em sentido estrito. Aí, the sky was the limit… e aquilo que parecia condenado ao fracasso converteu-se em trunfo. Como foi possível de um homem tão amachucado e algo diminuído emergir um soberano corajosíssimo, irredutível e até com um dom de comunicação muito frontal e genuíno? Um dom talhado no combate esforçado para suprir a sua fragilidade endémica, domada com suor e lágrimas, bem perto da fórmula de Churchill a convocar a nação para as armas, salvaguardadas as devidas proporções. Ninguém melhor que o príncipe lutador para enfrentar a onda nazi, que ensombrava a Europa, ameaçando devastá-la de um trago. Revelar-se-ia a pessoa certa na hora e no sítio certos. Uma história providencial até ao mais ínfimo detalhe.

Na óptica da narrativa cinematográfica, o desafio assumido perante o espectador foi assim expresso: «Simply fill(ing) you with joy» (sic). Nesse sentido, escolheu-se o melhor happy-end: a confirmação da possibilidade de superação do ser humano. Fruto de um processo árduo mas tanto mais credível e sólido quanto tenha sido sustentado pelo maior poder transformador da humanidade – o amor gratuito, a amizade profunda. Daí que boa parte do filme acompanhe as sessões terapêuticas, onde a amizade entre o difícil doente e o talentoso ortofonista se revelou um fármaco prodigioso. De certo modo, o milagre começara a rolar logo na primeira consulta, bem atribulada, quando Sua Alteza passou a ser reconhecida pelo diminutivo exclusivo da família – Bertie (simplificação carinhosa de Albert), sem quaisquer formalidades, nem outras barreiras que se adivinhavam vir a ser derrubadas com a eficiência da Luftwaffe. «My castle, my rules», exigia Lionel George Logue (1880-1953) no perímetro do seu consultório. Todos os ingredientes da relação de amizade foram emergindo, conquistados a pulso pela perseverança incrivelmente audaciosa de Logue. Coube, depois, ao príncipe a audácia de desafiar o protocolo e exigir a presença do seu salvador na cerimónia da coroação, na própria tribuna real.

O eficiente terapeuta / o alterego no filme

O momento soleníssimo do primeiro discurso de Guerra (3 de Setembro de 1939) proferido por Jorge VI, maravilhosamente redigido, constitui o clímax da estatura de um grande rei, já a saber responder aos desafios da época, onde a voz da rádio fazia furor (para azar do monarca). A mestria tinha-lhe sido inculcada pelo saber e, sobretudo, pela amizade paciente e pedagógica do especialista da fala, único acompanhante naquela gravação histórica, que mereceu os aplausos dos próprios técnicos da BBC, encantados com a estreia exímia do novíssimo soberano, a suplantar a frieza pouco humana dos microfones. Aquela pequena vitória fonética, crivada de bloqueios psicológicos e pânicos, realçava a vontade intrépida de não se esquivar ao combate. Uma coisa era reconhecida por todos: o rei que fora coroado a contragosto, arcava ali por inteiro o fardo régio, precisamente nas circunstâncias mais indesejáveis e hostis. O ritmo pausado do discurso até acentuava a gravidade do momento. E mesmo a falha no soletrar dos “w” constituía a sua marca de identidade, tal qual era.

Até na ortofonia os Duques de York eram cúmplices

Muitos outros discursos se seguiram, sempre na companhia do fiel Logue, uma ajuda selada pela amizade, até à morte. De igual para igual, sem títulos, como fora imposto na primeira consulta. Um caso único entre os súbditos de Sua Majestade, exceptuando naturalmente os membros da família Windsor. E se os ingleses pugnam pelas cortesias, distinguindo classes, raças, tudo com um crivo rigorosíssimo! Recorde-se, no filme, os remoques mordazes a Logue nos testes para actor de uma peça de Shakespeare, discriminando-o pela pronúncia pouco British. Ainda assim, serviu para reabilitar a fala do rei do Império Britânico. Felizmente que a vida consegue ser mil vezes mais criativa e irónica (em sentido benigno) que nós…

Os momentos cruciais dos avanços terapêuticos de Bertie são enfatizados por peças musicais que condizem com o estatuto do doente e com a cultura de Logue, um shakespeareano inveterado. Nas palavras do responsável pela banda sonora – compositor de uma peça original para a película – «Este é um filme sobre o som da voz. A música deve lidar com isso. A música tem de lidar com o silêncio. Tem de lidar com o tempoNa consulta inicial somos embalados pela Abertura das Bodas de Fígaro, de Mozart, enquanto decorre a gravação de uma voz fluente em que o príncipe (mais tarde) dificilmente se reconheceria. No discurso a anunciar o estado de guerra ressoa o fundo majestoso da VII de Beethoven (Allegretto), considerada por Wagner, Schumann e tantos outros a «celebração da vida», a «Sinfonia de Festa». Acresce ainda que a VII (de 1813) carrega o peso e o privilégio de ter comemorado um triunfo mais antigo, sobre o maior estratega militar de todos os tempos – Napoleão Bonaparte. Sob a batuta de Beethoven, foi executada durante o Congresso de Viena (Dez.1814) para as Casas reinantes da Europa, reunidas na capital do Império Austro-Húngaro:




Curiosamente, esquivaram-se à escolha previsível da V Sinfonia, cujas célebres notas inaugurais abriam as emissões da BBC dirigidas à Resistência. Aliás, o «V» tornou-se rapidamente o gesto de vitória reivindicada, desde a primeira hora, pelos adeptos da causa aliada.

Curiosa também a escolha da sonoridade radiosa do «Imperador» de Beethoven, a assinalar o êxito pouco óbvio do discurso real, que nos envolve na alegria festiva e cheia de afectividade que Jorge VI tanto apreciava, nada dado ao rodopio social em que o seu irmão mais velho era viciado.



Abbado e Barenboim numa dupla fantástica a executar

o «Imperador» de Beethoven – Concerto para Piano nº 5, Op. 73.

A relação de cumplicidade em crescendo, ao ritmo empolgante das melhoras do soberano, fazem-nos ter pena de que o filme acabe, até porque em Setembro de 1939 a Grã-Bretanha lançava-se num empreendimento heróico, que apetecia rever no ecrã. Reza a história que na luta anti-nazi os reis assumiram a sua parte, ao lado do povo, consolando os doentes, animando as tropas, visitando os desalojados nos escombros, recusando-se a deixar Londres, sem medo dos bombardeamentos nem dos black-outs diários. Percebe-se que Hitler tenha declarado a rainha inglesa como a mulher mais perigosa da Europa, incapaz de vergar. Um elogio rasgado, vindo de onde vinha!

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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(1) FICHA TÉCNICA

Título original: THE KING’S SPEECH

Titulo traduzido em Portugal: O DISCURSO DO REI

Realização: Tom Hooper

Argumento: David Seidler.

Produção: Iain Canning, Emile Sherman, Gareth Unwin

Elenco
Colin Firth (Bertie)
Geoffrey Rush (Logue)
Helena Bonham Carter (Elisabeth)

Música original de: Alexandre Desplat

Estúdios See Saw Films Bedlam Productions

Duração: 111 min.
País: Reino Unido

Site official - http://kingsspeech.com/

Prémios: galadoardo com Globos de Ouro e nomeado para 12 Óscares.




27 fevereiro 2011

8º Domingo do Tempo Comum

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de católico.

Aqui há duas semanas falava-se, neste espaço, de radicalidade e relativismo, um tema que deu origem a um comentário e a uma troca de mails com alguém que vira, no assunto, pontos de encontro com uma situação próxima. Hoje é dia de falar de prioridades. Poderia falar de importâncias, mas talvez se abrisse espaço a interpretações dúbias.

Serão importantes o sucesso profissional, os bens materiais, o poder, o êxito social, o dinheiro e o aplauso, a roupa ou as férias, o carro ou o telemóvel de última geração? Se a pergunta me fosse feita, responderia sim, sem qualquer rebuço. Tudo isto fará parte do conforto saudável e equilibrado que queremos para a nossa existência. O despojamento total seria, numa vida social e profissional comuns, quase impossível. Deus não nos exige que fechemos os olhos ao que é importante.

No entanto, como dizia ao princípio da minha reflexão, o tema de hoje é a prioridade - primazia de tempo, de ordem ou categoria - segundo os dicionários. Acima de tudo está a minha carreira, o meu êxito, o meu poder, o meu conforto? A resposta aí teria de ser clara: não. A nossa vida é uma espécie de mundo que, por uma impossibilidade natural, só pode ter um centro. O que queremos lá colocar? Deus, ou outros deuses - o tal sucesso, poder, dinheiro - que se tornaram fonte de adoração máxima? O que queremos que guie a nossa vida, determine o nosso comportamento, balize as nossas acções? Queremos ser ou preferimos ter?

Notas soltas:

* Alguém disse que rico não é o que tudo tem, mas aquele a quem nada falta.

* Numa época em que tantos ao nosso lado passam privações, é bom que tenhamos algum pudor, ética, recato na forma como usamos os bens que temos.

* Acredito piamente que nada do que temos nos pertence verdadeiramente, seja o que herdámos, seja aquilo com que nascemos. Tudo nos foi cedido, para que o possamos por ao serviço de um bem maior.

Bom Domingo para todos os que me lêem.

JdB


EVANGELHO – Mt 6, 24-34

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Ninguém pode servir a dois senhores,
porque ou há-de odiar um e amar o outro,
ou se dedicará a um e desprezará o outro.
Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro.
Por isso vos digo:
«Não vos preocupeis, quanto à vossa vida,
com o que haveis de comer ou de beber,
nem, quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir.
Não é a vida mais do que o alimento
e o corpo mais do que o vestuário?
Olhai para as aves do céu:
não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros;
o vosso Pai celeste as sustenta.
Não valeis vós muito mais do que elas?
Quem de entre vós, por mais que se preocupe,
pode acrescentar um só côvado à sua estatura?
E porque vos inquietais com o vestuário?
Olhai como crescem os lírios do campo:
não trabalham nem fiam;
mas Eu vos digo:
nem Salomão, em toda a sua glória,
se vestiu como um deles.
Se Deus assim veste a erva do campo,
que hoje existe e amanhã é lançada ao forno,
não fará muito mais por vós, homens de pouca fé?
Não vos inquieteis, dizendo:
‘Que havemos de comer? Que havemos de beber?
Que havemos de vestir?’
Os pagãos é que se preocupam com todas estas coisas.
Bem sabe o vosso Pai celeste que precisais de tudo isso.
Procurai primeiro o reino de Deus e a sua justiça,
e tudo o mais vos será dado por acréscimo.
Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã,
porque o dia de amanhã tratará das suas inquietações.
A cada dia basta o seu cuidado».

26 fevereiro 2011

Pensamentos impensados

O "engenheiro" Sócrates é infatigável; o facto de se ter formado num Domingo é sinal que nem aos fins de semana descansava.

"Human rights" toda a gente sabe o que é; haverá "human lefts" para protecção dos canhotos?

Tudo aponta para que Labão fosse obeso; Camões escreveu: Lambão pai de Raquel, serrana bela.

Há pessoas que dizem: o meu filho tem tantos mesinhos ou tantos aninhos; mesinho deve ser Fevereiro e aninho deve ser ser um ano comum, porque os outros têm mais um dia. Às pessoas que usam tais palavras costumo dizer: agora fazem aninhos, depois fazem anos e mais tarde fazem anões.

Esta é das mais estúpidas que me passaram pela cabeça
Se alguém lamber o meu ADN fica meu descendente ou meu antepassado?

Mais uma do Acordo Ortográfico, esse aborto
Nunca vi dois patos a lutar; se calhar, a exemplo da União Soviética e da Alemanha, fizeram um pato de não agressão.


SdB (I)

25 fevereiro 2011

prosia (num dia de agosto)

eu sei, eu sei, estou hiper-activo nas teclas. o velho fenómeno de compensação, afastado que está o chocolate. e não fumo (quase). e bebo pouco. vai daí, teclar é mesmo compensação directa. só pode ser. por exemplo, de repente, nesta porcaria de escritório, lembras-te de uns olhos a olhar para ti. e lembras-te, o verbo é outro mas ainda está por inventar, lembras-te (fica este) de dizer que não sabes se há um sentido, um desenho inteligente, um fito, um propósito, que há sempre a opção de não acreditar e começar aqui mesmo, hoje e agora, a partir isto tudo, o que inclui a minha vida e a tua, o coração e o corpo, as mesquinhas danças profissionais, e tudo o mais que, suspeitamos, serve para pouco. mas, lembras-te, logo a seguir de atirar algo como há sempre a outra possibilidade. e que desdenhar essa possibilidade é abandonar a possibilidade de uma beleza ética e estética e o que tu quiseres, mais vocês todos, mais eu todo - sei lá, todos. de repente, lembras-te do rosto e dos olhos - esses instrumentos divinos - e dessa tua expressão isso foi tão bonito. e brilhavas no escuro, como uma derradeira luz no deserto urbano, uma espécie de farol e eu uma espécie de barco em mar agitado e eu olhava para dentro de ti - e se pudesse, por osmose, mergulhava em ti, cindindo-me em milhões de partículas, atómos e matérias luminosas. eu sei lá. sim, eu sei, já tivemos melhores dias. à volta, ardem as constelações, como sempre no verão. cá dentro, arde o diacho do corpo, esse desassosegador permanente. entre uma coisa e outra, a memória de um frase certeira, no momento certo. e os lençóis por testemunha. e a madrugada lá fora, esmagada, uma e outra vez, pela poesia da tua pele na minha pele. se isto é prosa, eu sou poesia. e um coração que ainda sabe a saliva.

gi.

24 fevereiro 2011

Deixa-me rir...



É a propósito do filme My Blueberry Nights (ou o Sabor do Amor), de Wong Kar-Wai, que passou num dos últimos sábados na RTP2, e que eu, por acaso, já tinha visto anteriormente, que apresento a minha artista convidada de hoje: Norah Jones. Filha de Ravi Shankar (indiano, músico e conhecido tocador de sítara) e de uma americana, menina-actriz neste filme e mulher-cantora por mérito próprio há já muitos anos, é uma “baladista” de excepção e uma intérprete premiada com vários Grammys. Presença discreta e serena, voz límpida e expressiva, um repertório de um irrepreensível bom gosto (ainda que talvez vagamente monótono), são dela várias canções que me encantam. Por isso as apresento de seguida. Mas antes disso, aproveito para recomendar que aluguem ou peçam emprestado o filme acima referido. É lindo, melancólico, intimista, triste, lento e poético. Não é um filmaço, mas é um bom filme. Feito de pedaços de vida e de uma banda sonora particularmente bem conseguida. Fica-se “quebrado” depois de se ver este filme. Talvez porque se fique com a sensação que a vida não é como bem a imaginamos, mas como ela É. Graças a Deus que muitas vezes “acaba” bem.



Boa audição. E, já agora, bom filme.



(aproveito para referir que o meu querido amigo e companheiro de quintas-feiras PO faz hoje 50 anos! - e que eu estarei a celebrá-los com ele em Londres) .

PCP

23 fevereiro 2011

Gente que vou conhecendo

Agarremos as duas dimensões bastantes para caracterizar a Cidália: a física e a comportamental, já que o resto são floreados que pouco acrescentam à identificação da personagem.

Físicamente, a rapariga (38 anos, bióloga marinha, investigadora, amante de ficção científica e da doçaria conventual) situa-se numa espécie de trave olímpica com metade da largura. Alguns, metaforicamente falando, dirão que tomba para o lado de um excesso ponderal mínimo, quiçá imperceptível. Que pena, bastariam um ou dois quilos...; outros, presos à mesma metáfora, dirão que não, que é uma mulher muito interessante (uma educação verbal que suaviza a concupiscência do olhar).

Quanto ao comportamento, Cidália poderia ser classificada com uma palavra apenas: submissa. Em querendo compor-se a descrição poderia acrescentar-se uma segunda, como alguém que revela apelido, nome próprio: submissa. Naturalmente submissa. Profissionalmente é aquilo a que se chamaria, na aridez pouco criativa do jargão das empresas, uma excelente número dois. Discreta, desejosa de uma transparência cómoda, é o sossego dos recursos humanos em tempos de crise: não ambiciona subir.

Invistamos ainda um pouco na intimidade de Cidália, que é casada há 15 anos com Bruno (41 anos, engenheiro informático, coleccionador de revistas temáticas, adepto do Esperança de Lagos e devorador de pipocas) e de quem ele também poderia dizer: submissa. Naturalmente submissa. A bióloga vai por onde o Bruno vai, faz o que o Bruno faz, deixa-o brilhar nos convívios sociais, nos jogos de mímica, no quem quer ser milionário em versão de sofá caseiro, nas noites de sexo ao som dos UHF. Digamos, entrando de mansinho num erotismo arrojado que, no leito, Cidália mantém a mesma atitude promocional: não ambiciona subir. Bruno, gerente de uma empresa no Cacém, é mestre no trocadilho, e entre uma revista sobre processadores e um olhar lascivo, garante que gosta de estar em cima do acontecimento. E ri muito, porque lhe disseram que rir é o melhor remédio.

A lua está cheia e as marés estão altas, e o povo diz que é nessa altura que as mulheres se fixam mais. Numa cama conforama com lençóis de um negro sinistro, Bruno exercita a sua virilidade, revelando um corpo sem adiposidade. Cidália segue-o, cumpre sem louvor e sem gozo, deixa que ele, metaforicamente, afirme saber mais de bivalves do que ela, bióloga marinha e investigadora. Mas num instante, num minúsculo instante, o olhar dela transtorna-se, atravessa os peitorais do informático e aterra numa aldeia da Baixa Saxónia de onde veio o avô, o pai do avô e outros avôs até à quinta geração - porque de mais longe não se herda - e da sua boca começaram a sair, num jorro de água solta, uma infinidade de palavras em alemão. Bruno esquecera a costela teutónica da mulher e surpreendeu-se quando ela gritou Deutschland uber alles. Era tarde...

JdB

22 fevereiro 2011

Duas últimas

Odeio o culto da nostalgia. Havia uma estação de rádio com esse nome que eu sempre me recusei a sintonizar, por me enervar o conceito que tinha subjacente. Gosto de música de todas as épocas e, se tenho alguns períodos favoritos, é porque nesses ouvi mais música do que noutros. O post de hoje é exactamente de um desses meus períodos musicais mais intensos: o princípio da adolescência, em que, com uma memória ainda muito folgada, tudo, do bom ao mau, se retém. Quase 40 anos passados apenas uma pequena percentagem das músicas de então (e tal aplica-se igualmente aos livros que li e aos filmes que vi nessa altura) sobreviveu ao meu crivo crítico e integra a selecção musical desta coisa nova para mim chamada ipod.

É o caso do "Teach Your Children" dos "Crosby, Stills, Nash & Young", mais concretamente da autoria do britânico Graham Nash. Foi uma música que, quanto a mim e ao contrário do conjunto que a canta, envelheceu magnificamente e que oiço hoje com tanto ou mais prazer do que nos idos anos 70.

Na altura achava divertida a noção defendida na cantiga de que os filhos pudessem ensinar alguma coisa aos país. Agora enternece-me a sugestão de que pais e filhos possam alimentar-se mutuamente com os seus sonhos, e a ideia de que na relação ascendente/descendente não deve haver lugar a muitas perguntas, "just look at them and sigh and know they love you". Que coisa mais reconfortante!

JdC


21 fevereiro 2011

Fórmula para o caos

Com surpresa, ou não, a música dos Deolinda intitulada Que parva que eu sou tem concentrado diversos tipos de debate e reflexões. Em principio, uma letra como esta não me suscitaria qualquer tipo de interesse, muitos menos apetite em tomar parte na discussão sobre a suposta geração lixada. No entanto, foi feito uma exaustivo aproveitamento político por parte da esquerda radical, e com isso, o irrelevante passa a constituir relevância. E, como lembrou Nuno Morais Sarmento, o impacto que causaram os Deolinda em nada enobrece as máquinas partidárias, que não foram competentes o suficiente para causar a pretendida atenção.

Para que saibam, tenho 25 anos e refuto integralmente esta nova deriva. Não obstante os vários erros cometidos pela geração anterior à minha, que em muito dificultam a inicio de vida da juventude. Refiro-me à lei das rendas, que não sofre qualquer tipo de alteração e actualização desde o tempo da outra senhora e impede que os jovens joguem o jogo do arrendamento imobiliário, pelo menos nos centros urbanos. Lembro-me do inqualificável regime laboral vigente em Portugal, que centrifuga a possibilidade de mobilidade no emprego, assistindo-se ao espectáculo degradante de diversos trabalhadores da geração de 60/70 a arrastarem-se nos postos, que não produzem o equivalente ao que auferem e aos sacrossantos direitos adquiridos que emanaram do PREC. Pior que os referidos anteriormente, se bem que deriva do segundo, é a proliferação dos recibos verdes. Desde a entrada em vigor do novo código contributivo, os trabalhadores a recibo verde sofrem todos os meses um autentico esbulho fiscal, transferindo para o Estado quase metade do que auferem.

Mas apesar de tudo, creio que a geração em que me insiro deve muitos agradecimentos às anteriores. Será que os Deolinda não querem escrever uma letra a agradecer o regime democrático em que sempre viveram? E que tal sentirem-se gratos por poderem estudar no ensino superior de forma quase gratuita (para eles e não para os contribuintes).

Talvez reflectirem sobre a integração europeia? Sim, foi conseguida pelos que estavam antes. E o alargamento do mercado de trabalho aos países comunitários? E a moeda única? Sabem os Deolinda que a concessão de crédito há 30 anos atrás era muito difícil de obter? Sabem que os níveis da inflação ascendiam a 30%? Têm de emigrar para conseguir emprego? E então? Consultem os números da emigração nos anos 60. Emigraram para poder trabalhar na sua área? Não. Os desgraçados que emigraram nos 60 fizeram-no para poderem sobreviver. Foram conduzir táxis para França, trabalhar como operários na Alemanha e como porteiros no Reino Unido.

Quando me inscrevi na faculdade ninguém me prometeu que com ao canudo vinha anexado um emprego. Apenas me fizeram ver que o canudo poderá servir como rampa de lançamento para a selva que é o mercado.

À geração anterior, bem como aos líderes políticos que os representaram, eu digo um MUITO OBRIGADO.

O Bloco de Esquerda, o tal partido que se agarrou como uma lapa aos Deolinda, anunciou a apresentação de uma moção de censura ao governo. Contudo, nem 24 horas após o anuncio, logo avisou que a moção não era para ser levada a sério. Era apenas um instrumento que visava uma clarificação à esquerda. Promover a clivagem com o PS depois da coligação presidencial.

Como não é difícil de percepcionar, a verdadeira razão da moção é velha batalha pelo palanque da extrema esquerda com o Partido Comunista. A disputa entre Trotskistas e Estalinitas permanece quente.

Pedro Castelo Branco

20 fevereiro 2011

Domingo ……. Se Fores à Misssa !

«Amai os vossos inimigos»

O Evangelho de hoje é claro como a água …. nada daquelas mensagens tiradas a ferro das entrelinhas, nem daqueles pensamentos deslocados que dificilmente fazem sentido. Hoje, Jesus vem dizer-nos, preto no branco : Ama o teu inimigo …. abraça quem te virar as costas ….. beija quem te bater …. oferece a quem te roubar.

Tão longe da nossa realidade, estas ideias ! Parecem-nos incongruentes, irreais, impossíveis de realizar, não é verdade ? Qualquer pessoa que, nos dias de hoje, assim se comporte é, imediatamente, apelidado de papalvo, tanso, totó … you name it ! Quem, no seu perfeito juízo, sorri a quem o insulta ? Quem, no seu perfeito juízo, dá a face direita depois de lhe baterem na esquerda, ou qual de nós vai oferecer dinheiro ao ladrão que o acaba de roubar ? Muito pouca gente conseguirá agir assim. Está na natureza humana, na nossa natureza, funcionarmos “olho por olho, dente por dente” ou “amor com amor se paga”. Mas Cristo, sem medo, vem revolucionar os costumes da época e lança-nos este difícil desafio do “ódio com amor se paga”.

Precisamos ter muita coragem e muita fé para praticarmos estes ensinamentos. Muita coragem, porque a nossa sociedade não se compadece daqueles que se mostram humildes e compassivos; e muita fé porque “dar a outra face” é um salto no escuro, eu diria que é quase anti-natura, requer muita confiança, muita serenidade, muita sabedoria divina.

“Pelo sonho é que vamos”, diz o poeta. “Pelos inimigos é que nos santificamos”, digo eu. Se eu conseguir amar, nem que seja um pouquinho, um meu inimigo, eu já estarei a entrar no caminho da santidade. Porque para o amar, eu precisei primeiro de o perdoar, precisei de preparar o meu coração para o perdão acontecer, precisei de criar dentro do meu coração o propósito para o perdão e é essa transformação que se dá dentro do nosso coração, que eu chamo santidade. A santidade não é só para o Papa ou para os mártires. A santidade está ao alcance de cada um de nós, muito mais próxima do que julgamos. O segredo está na capacidade em aceitarmos que a transformação aconteça dentro do nosso coração.

Domingo, Se Fores à Missa ……. Ama o Teu Inimigo !

Maf


Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus


Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Ouvistes que foi dito aos antigos: ‘Olho por olho e dente por dente’. Eu, porém, digo-vos: Não resistais ao homem mau. Mas se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda. Se alguém quiser levar-te ao tribunal, para ficar com a tua túnica, deixa-lhe também o manto. Se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, acompanha-o durante duas. Dá a quem te pedir e não voltes as costas a quem te pede emprestado. Ouvistes que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem, para serdes filhos do vosso Pai que está nos Céus; pois Ele faz nascer o sol sobre bons e maus e chover sobre justos e injustos. Se amardes aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem a mesma coisa os publicanos? E se saudardes apenas os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não o fazem também os pagãos? Portanto, sede perfeitos, como o vosso Pai celeste é perfeito».


Palavra da salvação.

19 fevereiro 2011

Pensamentos impensados

Os espectáculos no CCB e na Gulbenkian começam sempre 5 minutos depois da hora marcada; a isto chama-se pontualidade. Há tempos, um actor brasileiro (Falabela?) pôs os espectadores portugueses "em sentido" exigindo que não entrasse ninguém na sala depois da hora marcada; parece que houve quem não visse a peça.

O futebol e as toiradas, considerados espectáculos bárbaros, começam a horas.

No PS não há só jobs for the boys, também há jobs for the vacas, embora não sejam 50%, conforme aconselhado.

Mote e glosa
Mote: Ex aequo - com igual mérito
Glosa: És eco - está sempre de acordo com o chefe
É Zeco - é o José
És equus - és um cavalo

What's in a name
Amy Winehouse já nasceu predestinada, daí chamar-se vinho; quanto à qualidade do vinho, dado que tem dinheiro, não acredito que seja vinho da casa (Winehouse).

Os bipolares necessitam de tomar lítio, sendo, por vezes, apanhados em flagrante de lítio; se caírem no chão, são apanhados em flagrante delíquio. O Fernando Pessoa era apanhado em flagrante de litro (dito pelo próprio).

Retenção de urinas é uma espécie de retenção na fonte.

SdB (I)

18 fevereiro 2011

a propósito da poesia de ferreira gullar

pela palavra é que vamos,

invocando e evocando nossa senhora do micro-espanto,
ou a inversa, atenuando nossa sofreguidão torrencial.

queremos bálsamos e unguentos, contra nosso tormento:
esse mesmo, o do quotidiano rasteiro e banal.

ferreira gullar, poeta-gigante-irmão, caminha,
como caetano, contra o vento, sem lenço nem documento,

arriscando epifania em desequílibrio (ou equação fosforecente),
forma possível de explicar o que explicação não tem.

é que minha gente:

poesia é vida condensada-e-logo-expandida
que a matemática não explica
e a metafísica acerta menos do que falha.

resta então a arte de caçar o fogo pela palavra
ou então de incendiar a vida de espanto-elefante.
numa linha derradeira: resta-nos tentar esmagar

o nada.
(bem melhor, ainda assim, do que se nos restasse
nada de nada.)

gi.

17 fevereiro 2011

Deixa-me rir...

Caros audiophiles, the other day I discovered a song (It's Not That Easy) Being Green, with a beautiful heartfelt lyric interpreted by a wonderful jazz singer and pianist, unknown to me until now, named Shirley Horn.
I thought, this will be a good song to introduce to my audiophile friends when Spring arrives and when all of Nature around us is turning green.
But, I cannot wait that long, it is too good, it is in my head and will not go away.
Unfortunately the Shirley Horn video cannot be posted, but I have found instead another fantastic version by the incomparably soulful Ray Charles.

The words are simple and universally understood. Who among us has not, at some time, had feelings of self-doubt, needing reassurance, of wanting to be a different person from how we are, or from how we are perceived by others? Before realising that, maybe, we should accept who we really are and just be the best that we can be.

It's not that easy being green
Having to spend each day the colour of the leaves
When I think it could be nicer being red or yellow or gold
Or something much more colourful like that

It's not that easy being green
It seems to blend in with so many other ordinary things
And people tend to pass you over
Cos you're not standing out like flashy sparkles on the water
Or stars in the sky

But green is the colour of spring
And green can be cool and friendly-like
And green can be big like an ocean or important like a mountain
Or tall like a tree

But if green is all there is to be
It could make you wonder why,
but why wonder?, why wonder?
I'm green and it'll do fine
And it's beautiful and I think
it's what I want to be




And then, this next version was a funny surprise! But how did I not remember this performance from my childhood - it is iconic :



A proxima.
PO

16 fevereiro 2011

Livro dos despautérios iii)

A linearidade é uma aldrabice. É solúvel em vinho. Dobra-se a pulso ou à sorte. Nós, gente miudinha, somos tão mestres da ilusão que nos iludimos da nossa mestria. Gostamos de ignorar, por afinidade de lógicas, que a linearidade é quase sempre uma aproximação grosseira, tirada a ferros, inventada para sossegar ou afligir sem espinhas. Andar enganado é mais fácil. Ainda assim, quer no aborrecimento, quer na exaltação, e sobretudo quando as circunstâncias aparentam uma clareza e definição que não deixem apetite à dúvida, eu recordo a facilidade com que me deixo enganar por mim mesmo, escolho um assento que me pareça adequado e, com o maior dos vagares, me debruço sobre as curvas que sei que vou encontrar, ainda que toda a gente me diga que por ali é sempre a direito.

ZdT

15 fevereiro 2011

Efemérides e tristezas

Assinala-se hoje, no mundo inteiro, o Dia Internacional das Crianças com Cancro. É tempo de lembrar os que partiram mas, sobretudo, os que cá estão e mantêm uma luta desigual. Nem de propósito, recebo um mail com a carta que reproduzo. Embora o nome venha referido, decidi tirá-lo por uma questão de pudor que não saberia explicar. O apelo, esse, é claro.

JdB

Olá a todos.

Chamo-me DG, tenho 11 meses (quase 12) e sou portador de uma leucemia linfoblástica aguda tipo B, derivada de uma translocação do cromossoma 4 com o cromossoma 11. Perguntam vocês: É grave? Sim, é muito grave!

Primeiro que tudo peço a todos que nem tentem andar a vasculhar na internet a gravidade e as causas da minha doença, porque o tempo que eventualmente gastariam em tal acto, bastariam 20 a 30 minutos do vosso tempo, para tentarem salvar-me a vida. É para isso que vos estou a escrever estas curtas linhas, na expectativa de, quem sabe, um de vocês poder salvar-me. O meu pai e a minha mãe andam muito tristes e todos aqueles que gostam de mim também.

Não vos escondo que tenho sofrido muito desde o dia 15 de Dezembro, mas também não vos escondo que não é minha intenção deixar de lutar.

É por isso que peço a todos os amigos do meu pai e da minha mãe que reencaminhem este e-mail para o maior numero de contactos.

Um beijinho para todos vocês do DG

Duas últimas

Corria o ano de 1975, talvez, e eu passava férias numa casa onde não havia luz eléctrica, tudo se fazendo, maioritariamente, ao cheiro do petróleo. Sempre que descrevia as características próprias daquele sítio, a pergunta era fatal: e o que fazem vocês o dia todo? A resposta, essa, proferia-a com a alegria simples de quem encontrou um paraíso setembrino: nada! E era isso, no fundo, que (também) tornava aqueles dias tão inesquecíveis. A não obrigação da televisão ou das noitadas, a tranquilidade de uma noite sem programa. As semanas corriam num remanso de relógio lento, na companhia de cigarros fumados às escondidas, jogos de pingue-pongue, idas à vila para ver televisão, ou a Badajoz para comprar caramelos solano e bisnagas de leite condensado.

É nesta altura, talvez, que conheço o disco a que este post se refere. Ouviamo-lo - eu e o meu anfitrião, parceiro de post neste blogue - num gira-discos de plástico, movido a pilhas, enquanto as conversas se desenrolavam com o mesmo vagar que o fumo do português suave sem filtro, de que ambos éramos fãs. De que falávamos? Provavelmente de amores perdidos e encontrados, dos primórdios de uma política onde militaríamos ambos, de uma casa de que nos despedíamos todos os anos, porque não sabíamos se regressaríamos no seguinte.

Revivalista, eu? De todo! Eram tempos felizes, apenas, marcados pela alegria das cartas que recebíamos, não pela tristeza das que o carteiro teimava em não trazer.

JdB

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