15 junho 2011

Preta, canja e Dona N.

Este fim de semana conheci um mundo novo. Conheci o campo profundo, conheci a Dona N.

A dona N., senhora cujo pai foi um dia aos E.U.A. e se apaixonou pelo nome estrangeiro, decidiu baptizar a filha com este nome que aparentava ser tão diferente.


Esta senhora, com setenta e oito anos, e fruto das vicissitudes e da ordem natural da vida a que estava habituada, mudou-se para o campo, com o marido, tinha 18 anos. Como marido e mulher, enquanto casal, enquanto seres humanos e enquanto família humilde tiveram uma vida perfeitamente normal, com aspirações a pouco mais do que umas couves, feijão verde e raminhos de coentros. Tiveram dois filhos, e hoje a dona N. tem 4 netos e mais um ou dois bisnetos.


O marido morreu, fruto de álcool a mais e de um vício que era pouco falado. O vinho era mais do que um acompanhante social, era uma prova de masculinidade com os amigos e com a família. Ai do homem que não gostasse do seu copo de vinho às nove da manhã; quer-se dizer, já se alimentou os animais, já se levantou a comida da terra para o dia e as unhas já estão sujas. Tornava-se então normal que às nove e meia da manhã já se tivesse bebido um ou dois copos de vinho.


Infelizmente, foi o que o estragou e acabou com a vida dele. Não do ponto de vista social, porque no campo ninguém quer saber se o marido de alguém aparece a dormir à porta da cooperativa às duas da manhã. A posição social e o que os outros vão pensar é uma atitude urbana. No mundo rural, o homem caído de bêbado numas escadas alheias não incomoda, chega-se pró lado e ele há-de acordar.


Mas, apesar desse desinteresse e despreocupação por uma dependência, a dona N. sofreu muito com a morte do marido. Dizia-me, zangada, que se só se almoça uma vez, se só se planta uma coisa de cada vez e se o sol só se alevanta uma vez, porque é que se bebe vinho mais do que uma vez?. Não soube responder-lhe. Como é que se explica um vício a uma senhora que nunca teve uma televisão, não sabe ler, nunca tomou um remédio e que acha que a única coisa que está mal no mundo é haver árvores sazonais: oh menina, o que eu mais queria era morangos todos os dias.


Chorou muito, chorou ao meu lado e eu não soube o que dizer. Limitei-me a ficar ao lado dela a sentir que o assunto devia ser desviado para ajudá-la a esquecer a única coisa que a fazia sofrer.


O T., meu grande amigo e dono da quinta vizinha da da dona N., tem variados animais. O assunto voltou-se então para a saúde da preta, uma galinha que andava a alimentar-se pouco. A dona N. voltou a sorrir e disse: oh menino, esta galinha está doentinha, ponha-lhe arroz no chão a ver se enche o papo. E a galinha comeu o arroz.

Tocava nos animais com uma ligeireza de quem pega numa maçã e leva à boca. Enquanto contava a vida dela, tinha ao colo a canja (outra galinha), a preta e dava festinhas a um pitt bull que meteria medo a qualquer um.

O T., fruto da sua inexperiência no campo, vê na dona D. uma ajuda essencial para a nova vida dele. Ela subia às árvores, limpava sebes e chamava preguiçoso a quem não lavra a terra todos os dias, chamava idiota a quem não plantava uma batata na altura certa.


Esta é a dona N. Foi esta senhora pequenina, com a força de um gigante que me fez dar valor a mais coisas e a perceber que há coisas que se fazem uma vez por dia e não se devem fazer mais: como o copo de vinho, como o mau feitio.


Como diz o meu pai, já não se perdeu tudo.


TdB

4 comentários:

  1. Bom dia minha querida,
    Olhos que ainda percebem esta verdadinhas da vida. Digo olhos, porque não chega ver, ouvir, é preciso sentir, processar e acima de tudo aprender. O olho é símbolo de sabedoria e é com (repito) verdadinhas que nos tornamos sábios.
    Que bom ler isto em si.

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  2. É giríssima a sua maneira de escrever. Criativa, cheia de vitalidade e cor e muita sensibilidade. Gosto sempre muito do que escreve (mas tenho saudades da sua rubrica sobre os acessórios de moda essenciais...). pcp

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  3. JB, amei teu blog.
    Mas teu perfil... Tenha dó!

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  4. Obrigada a todos pelos comentários. Sempre simpáticos e motivadores. TdB

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