12 setembro 2011

Vai um gin do Peter’s?


No MNAA está patente, até 25 de Setembro(1), uma exposição em torno da obra emblemática do pintor mais vanguardista (arrisco dizer) do final da Idade Média e Renascimento – Jheronymus Bosch  (1450-1516). O Tríptico Das Tentações de Santo Antão contracena com duas telas da mesma oficina, vindas da Flandres (Museu em Bruges) e temporariamente cedidas a Portugal. Nas duas próximas Quintas(2), dias 15 e 22, haverá visitas guiadas às 21h, 22h ou 23h, assim como aos fins-de-semana.  

O modernismo de Bosch é inquestionável. A ponto de a sala com as suas telas, no Museu do Prado, ser a preferida dos visitantes mais novos. De facto, revela-se tão vanguardista, que nos esquecemos que cinco séculos nos separam da sua vida… Mas não da sua arte! Menos ainda do seu imaginário ou do seu interesse pelo universo psicológico. Num certo sentido, como que antecipa a ficção científica. Incrivelmente actual.    

Bosch descende de uma família de pintores miniaturistas, de quem terá herdado o gosto pela minúcia. Viveu na Holanda, relacionando-se com a elite da época. Entre os seus coleccionadores encontrava-se o rei de Espanha, Filipe II, Margarida da Áustria e inúmeros aristocratas espanhóis, franceses e italianos. Tendo sido casado com uma herdeira rica e vinte cinco anos mais velha, não deixou descendência. Era membro da Irmandade de Nossa Senhora, que reunia a nobreza e a alta burguesia, onde terá alargado os contactos, chegando a obter encomendas de Veneza. Celebrizado em vida, ficou remetido ao esquecimento nos séculos seguintes, até ser redescoberto pelos adeptos do Romantismo, no século XIX, encantados com o seu estilo apocalíptico e a exploração inesgotável do fantástico.

As incursões de Bosch ao mundo dos pensamentos, dos sonhos, das memórias, foram também muito apreciadas pelos discípulos de Freud, em especial pelo famoso psiquiatra suíço, Carl Gustav Jung, que o considerou: «The master of the monstrous… the discoverer of the unconscious

Note-se que nem tudo em Bosch é ironia e moralização. Há, acima de tudo, uma agudeza psicológica invulgar e um talento especial para contar histórias, usando o pincel em vez do lápis. São histórias que mergulham na interioridade humana e espelham a existência espiritual. Ao lado dos poucos seres humanos nas telas pulula uma multidão vociferante de criaturas surreais, ferozes e mortíferas, com enorme carga simbólica.

Quando trabalha o rosto das personagens, Bosch fixa-lhes o temperamento e os movimentos da alma. Num dos seus auto-retratos deixa transparecer um olhar vivo e perscrutador, atento à realidade, que está longe de se esgotar no mundo visível:


Também Bosch está longe de se esgotar nos rótulos por que se celebrizou. Vale a pena rever telas menos divulgadas para se perceber a sua riqueza de perspectiva e realçar facetas que parecem desviar-se do padrão conhecido, como a empatia e o humor suave. Naturalmente já com as marcas da sua originalidade esfusiante, pródiga a inventar novas criaturas.

Uma das primeiras representações da infância de Jesus respira uma serenidade e harmonia que, dificilmente, associamos à sua arte:


Christ Child with a Walking Frame
c. 1480
Oil on panel, diameter 28 cm
Kunsthistorisches Museum, Vienna


Outra tela do mesmo período, talvez pela delicadeza da temática, transmite a mesma calma sóbria e solene. À maneira de Bosch, foi transposta para a época e o país do pintor, decalcando os costumes e o guarda-roupa do século XV. Já ali ressalta a típica acumulação de planos, em zoom, permitindo a coabitação de diferentes cenas. Tudo com enorme detalhe.


Epiphany
1475-80
Oil on panel, 74 x 54 cm
Museum of Art, Philadelphia


O pintor do grotesco e do absurdo transborda de humor, habilmente esgrimido para surtir efeitos didácticos. As múltiplas narrativas que congrega num mesmo tríptico, apontam para o horizonte último da vida. Nos painéis interiores (central e volantes laterais) superabunda a cor, enquanto nas portas exteriores – i.e., nas «grisalhas» – Bosch limita-se a uma paleta de tons cinzas e cenas de tema único. Assim, o observador era colhido de surpresa, quando as portas do armário se abriam (apenas em dias festivos) e era assaltado pela explosão cromática que jorra dos seus trípticos, cravejados de histórias e de habitantes, num efeito de caleidoscópio. Muito atordoante!

Perito em jogar com duplos e triplos sentidos, convoca uma parafernália de símbolos, que se inserem no vasto património literário e folclórico da Europa ocidental. A fonte de inspiração preponderante é a Bíblia, sobretudo as passagens da vida de Cristo, para além dos santos eremitas, que o fascinam, talvez por terem dispensado os fugazes confortos mundanos e afrontado as maiores tentações do ser humano. Em Bosch, as tentações são corporizadas por exércitos de seres repugnantes, apenas visíveis aos olhos do santo. Curiosamente, é rara a presença de santas nas suas pinturas.

O bem e o mal aparecem fortemente contrastados. Aos sábios do deserto opõem-se entes maléficos, demoníacos. De um lado: figuras modestas, generosas, de enorme candura e coragem, que se apoiam na humildade e na entrega ao seu caminho para resistirem às duras investidas das forças do mal. Do outro: silhuetas obscuras, de formas retorcidas, burlescas, algo selváticas e assustadoras, em postura de ataque, encarnando uma profusão de vícios e de toda a espécie de seduções. 

Aplica-se a Bosch o título de um famoso filme de Wim Wenders: tão longe, tão perto. É extraordinário como as suas personagens hiper imaginativas parecem falar a linguagem do nosso tempo, com a longevidade característica dos grandes artistas.


Painéis interiores do Tríptico das Tentações de Santo Antão (3) c. 1500.
                      Assinado (canto inferior esquerdo do painel central). Óleo sobre madeira de carvalho

OUTRO TEMA: num relance, aqui vai uma súmula das imagens do milhão e meio de jovens que se reuniu em Madrid para participar na Jornada Mundial da Juventude, em plenas férias:


http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=lZMeNklEcn0

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) Museu Nacional de Arte Antiga, www.mnarteantiga-ipmuseus.pt/pt-PT/exposicao%20permanente/obras%20referencia/ContentDetail.aspx?id=214
     Rua das Janelas Verdes,  Telefone: (351) 21 3912800  E-Mail: mnarteantiga@imc-ip.pt

     «Esta exposição, realizada em parceria com o Museu Groeninge (Bruges, Bélgica), coloca o Tríptico das Tentações de Santo Antão do MNAA criticamente em confronto com o Tríptico do Juízo Final e o Tríptico das Provações de Job, ambos da colecção do museu de Bruges

     Horário do Museu:
3ª feira: 14h00-18h00;  4ª feira a Domingo: 10h00-18h00;  5ªs (8.Set.): 10h00-00h00.
Encerrado às 2ªs feiras, 3ªs feiras de manhã.

(2) Visitas guiadas para adultos, sem inscrição prévia e limitado à capacidade da sala. Ponto de encontro no Átrio “9 de Abril”:
Quintas, 15 e 22 de Setembro: 21h00, 22h00 ou 23h00. Note-se que das 18h00 às 20h30 0 Museu estará encerrado.
Domingo, 11 e 25 Setembro: 11h30
Domingo, 18 Setembro: 11h30 e 15h30

Visitas orientadas para grupos
Terça-feira (tarde), Quarta a Sexta-feira (manhã e tarde)
Com marcação prévia através de e-mail mnaa.se@imc-ip.pt ou telefone 213912800
.

(3) Nota do MNAA sobre o Tríptico das Tentações de Santo Antão:
«Uma inventada unidade do espaço integra as múltiplas cenas e narrativas que preenchem o painel central e os volantes laterais, território para um formigar de seres e de episódios que desafiam a nossa interpretação e que ocupam, literalmente, os quatro elementos do universo (céu, terra, água e fogo), matéria matricial da representação. Santo Antão divisa-se em três sequências da sua lendária experiência eremítica: à esquerda, agredido física e directamente pelos demónios que o elevam no ar e precipitam no solo; à direita, enfrentando a tentação da carne e o pecado da gula; a meio do painel central, sendo confrontado talvez com a maior de todas as tentações, a do abandono da Fé. Aí, no centro de tudo, no centro de um redemoinho diabólico, num espaço e num tempo invadido pelo mal, Santo Antão olha para nós e aponta para uma dupla representação de Cristo, figura e imagem refugiadas numa ruína.
Para além desta narração hagiográfica, a obra encerra no seu conjunto uma visão totalizante do Mundo invadido pelo Mal, personificado aqui por uma legião de seres demoníacos e aparentemente fantásticos que também significam um tributo do pintor a uma longa tradição figurativa medieval. O tríptico pode considerar-se, assim, o equivalente visual de um velho tratado de demonologia, muito embora Bosch entenda o espaço e o mundo numa unidade sintética moderna, também pela utilização, não oculta, antes expressamente patente, das mais chocantes imagens, no que é um modo novo de utilizar, organizar e mostrar um material iconográfico antigo e tradicional.
A contemplação da peça não fica completa se não se virem as dramáticas “grisalhas”, no reverso dos painéis laterais, que nos mostram dois passos da Paixão de Cristo: a Prisão e o Caminho do Calvário no momento do encontro de Cristo com Santa Verónica. Ambas as cenas são marcadas pela violência e por um espaço desértico em primeiro plano, deserto que é lugar de cadáveres e de condenados, de morte e desolação, o que vem acentuar a mensagem pessimista, embora não desesperada, de todo o tríptico.
Incorporada no MNAA a partir do antigo palácio real das Necessidades, desconhecem-se as circunstâncias da chegada da obra a Portugal, não sendo certo que tenha feito parte da colecção do humanista Damião de Góis, como algumas vezes é referido





3 comentários:

  1. Sobretudo, por mérito de Bosch. Bjs, MZ

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  2. Oh MZ, os teus textos deviam pertencer ao catálogo duma exposição.... bjs. pcp

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