Chamava-se Raymond e adorava livros. Alto, magro, desengonçado, evitara o epíteto de rato de biblioteca porque mais parecia uma enguia. Fruto de desejo e capacidade, chegara a reitor de uma universidade famosa. De Pamela, com quem casara há 18 anos, tivera um filho tardio e inquietado por uma inteligência precoce. A sua cunhada Miriam, no final de um périplo pelo mundo, pedira-lhes acolhimento, desejosa de um ambiente mais burguês, longe das estações de comboio e dos cigarros que provocavam risos extemporâneos.
Raymond organizava, anualmente, uma conferência com colegas reitores de outras universidades locais. No final do ciclo de palestras decidia-se o tema para o ano seguinte. Os assuntos eram variados, misturando o sério e o lúdico: num ano debatia-se quanto e para onde se expandia o universo, no seguinte a contribuição do contacto físico para o aumento da longevidade. Tudo servia para uma discussão académica, porque sobre tudo se podem elaborar tabelas e congeminar estatísticas.
Na manhã da conferência, tradicionalmente aberta pelo reitor anfitrião, Pamela abandonou o lar sem que se soubesse o destino, o modo de locomoção ou o que teria destinado para o jantar. Raymond empalideceu, tartamudeou frases ininteligíveis e desarvorou, todo ele ornamentado por um enorme ponto de interrogação: quem, o quê, porquê, quando, onde?
O salão nobre enchera-se de agitação: reitores suspensos, moleskines abertos, mentes curiosas. No entanto, de Raymond nada se sabia, pois tinha vestido a pele de um cão pisteiro para seguir, talvez, o odor a finados da sua relação. A salvação estava em Miriam, pois só ela tinha acesso ao discurso escrito pelo cunhado. A jovem, munida de brio familiar, de uma boca sensual, e de pena por um cunhado que se pusera à estrada para assistir às suas próprias exéquias, aquiesceu em abrir o encontro.
O salão nobre enchera-se de agitação: reitores suspensos, moleskines abertos, mentes curiosas. No entanto, de Raymond nada se sabia, pois tinha vestido a pele de um cão pisteiro para seguir, talvez, o odor a finados da sua relação. A salvação estava em Miriam, pois só ela tinha acesso ao discurso escrito pelo cunhado. A jovem, munida de brio familiar, de uma boca sensual, e de pena por um cunhado que se pusera à estrada para assistir às suas próprias exéquias, aquiesceu em abrir o encontro.
Miriam subiu ao palanque de onde falaria a um grupo de notáveis, cérebros intelectuais dedicados à arte sublime do pensar - porque para agir há outro género de gente. Respirou fundo, percebendo o encanto que terá provocado o enchimento da sua caixa torácica, e falou com voz clara:
Como sabem, Raymond teve de se ausentar devido a problemas de força maior. Ofereci-me para ler o seu discurso de abertura. O tema proposto para este ano é...
Miriam olhou em frente e vislumbrou um lugar vago na segunda fila, onde se sentaria o secretário de Raymond, um jovem finalista com cabelo cor de cenoura, acne persistente nas faces e umas mãos de irrequietude exploratória. Percebeu de imediato o enredo, mas não lhe faltaram forças para projectar uma voz acutilante, porque há quem não se perturbe com a necessidade de silêncio dos povos:
O tema proposto para este ano é o seguinte: a infidelidade conjugal no mundo universitário. Causas e consequências. A gestão do drama e da euforia.
JdB
JdB
Logo na primeira linha apercebi-me que só podia ser o JdB a escrever! Inconfundível, único, delicioso... bjs. pcp
ResponderEliminarO mundo académico tem destas coisas.O isolamento e o pó dos livros torna-nos desleixados e desinteressantes.
ResponderEliminarSó o JdB é que consegue construir histórias assim. Sabe, irrito-me quando leio estas coisas porque fico sempre à espera de mais. Bem posso sentar e, enquanto espero, escrever mais duas teses de doutoramento.