Por uma ou outra vez, em conversa com outros ou comigo próprio, surgiu
esta pergunta: se me fosse possível
escolher, em que país e época gostaria eu de ter vivido? Desde que me
lembro que a resposta foi sempre uma: na Rússia dos Czares, no fim do século XIX, início do seguinte.
Mais correctamente, na Rússia com
os Czares.
Este jogo – se é que assim se pode chamar – é totalmente lúdico, sendo
que expurgo considerações de justiça social ou outras. Obviamente que sei do despotismo, da miséria, da fome, das assimetrias. Nada disso é
relevante, porque a minha escolha não se baseia em aspectos políticos ou
económicos - ou mesmo humanos, no seu sentido mais nobre.
Perguntar-me-ão, os que mantêm a teimosia de me ler, o que me levou a
esta escolha? Em bom rigor não sei. Nunca fui à Rússia, embora esteja nos meus
planos de médio prazo. No que diz respeito ao cinema, vi o “Doutor Jivago” e
fixei a beleza da Julie Christie. Há muitos anos vi o “Como matei Rasputine” e
dele fixei, sobretudo, o difícil que foi assassinar-se o místico russo que
tanto influenciou a czarina Alexandra: ingeriu veneno, deram-lhe tiros, foi
castrado, a tudo sobreviveu. Acabou afogado no rio Neiva... Li poucos autores
russos, não conheço a poesia, gosto dos compositores clássicos (cronologicamente
terminando em Rachmaninoff), nada sei sobre pintura.
No entanto, e apesar deste meu conhecimento vago e menor da cultura
russa, há algo que me fascina naquela época e naquele país. Sinto-lhe
grandiosidade, mais do que requinte. Imagino-lhe a lareira que protege do frio,
mais do que o calor que suscita o jardim. Se a Rússia fosse um cão, sê-lo-ia de
uma raça grande – talvez um galgo com mais volume – e nunca um cãozito franzino
a ladrar alto num tom de soprano lírico. Derrotaram os franceses (se bem que no início do séc. XIX), o que não me parece despiciendo, e classifico a música que
conheço (que me perdoem os musicólogos) como volumosa, mais do que palaciana, sendo de realçar os cânticos ortodoxos. E o caviar, que não deve ser desmerecido,
que se deveria comer naqueles salões às pazadas... Há algo de imponente, majestoso, orgulhoso, grande, bonito, grave, profundo, que me interessa.
Poderia espraiar-me em mais considerações, mas temo afugentar os
resistentes. Ficam evidências culturais
do que me atrai, porque o resto é (bastante) inexplicável dentro de mim.
JdB
(...) Um dos textos mais impressionantes
sobre o valor da escuta é o conto “Tristeza” de Tchékov. Conta a história de um
cocheiro, Iona, que perdeu um filho e não encontra, entre os humanos, ninguém
disponível para o amparar. «Precisa contar como o filho adoeceu, como padeceu,
o que disse antes de morrer e como morreu... Precisa descrever o enterro e a
ida ao hospital, para buscar a roupa do defunto. Na aldeia, ficou a filha
Aníssia... Precisa falar sobre ela também...», mas ninguém o ouve. O cocheiro
volta-se então para o seu cavalo e enquanto lhe dá aveia começa a expor-lhe,
num longo e dorido monólogo, tudo o que viveu. E as últimas palavras do conto
são estas:
«O cavalo foi mastigando, enquanto
parecia escutar, pois soprava na mão do seu dono... Então Iona, o cocheiro,
animou-se e contou-lhe tudo».
(Texto já publicado neste estabelecimento e retirado daqui)
Ivan Kramskoy (1837-1887) [imagem retirada daqui]
Excelente leitura, para (não)variar. E para começar o dia, depois de noite que pareceu que se ia eternizar.
ResponderEliminarAbraço,
fq
Interessante tema este ! Eu vejo-me em Versailles, Sec. XVIII, aristocrata, benemérita, revolucionária e irreverente :-) Porquê? Pois.... não sei bem !
ResponderEliminarMaf
Bom, sou fã da cultura russa, do povo russo, da grandiosa história daquela nação gigante. Só um povo como aquele para resistir ao horror do comunismo, apesar de ter estado no "olho do furacão". A maioria dos povos sucumbiria. A própria Alemanha de Leste ainda hoje carrega cicatrizes violentas dessa devastação psicológica e anímica provocada pelo comunismo, que (estranhamente) não se sente tanto na Rússia, onde já tive a sorte de ter estado. Não por acaso, a maior surpresa na II Guerra foi a resistência do povo russo à poderosa invasão nazi. São, de facto, muito invulgares e fora de todos os padrões correntes. Obrig., JdB, pelos seus cenários tão livres e interpelativos, que nos fazem sonhar, MZ
ResponderEliminarMuito bom texto, para variar. E se bem que não gostasse de viver na Rússia da passagem de século (estou agora a ler a biografia da Sofia Tolstoi)- duríssima como sempre, como bem diz a MZ -, concordo consigo que a Rússia tem algo de mágico. Também eu sou fascinada desde sempre pela história da Rússia, pela sua grandiosidade, opulência, majestade, exagero, dramatismo, dimensão, exotismo (um exotismo europeisado)... já não se "fabricam" tempos e cortes como aquelas. O nível - whatever that means - baixou em todo o mundo. Em todas as áreas. Porquê? Pois não sei. Talvez porque se perdeu o sentido generalizado de Deus (que necessariamente se reflectia nos feitos e atitudes humanas). Se Deus é Grande, se fomos feitos à imagem e semelhança dele e acreditamos nisso, well... parece-me óbvio que o outcome reflectirá, de algum modo, esse luz interior. Uma conclusão muito empírica e minha, evidentemente. Bjs. pcp
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