25 março 2013

Vai um gin do Peter’s?


Nada como a vista aérea para se apanhar a visão global. Basta lembrar que é a melhor forma de mapear um território ou mesmo de substituir os mapas clássicos, como faz o Google earth. Os benefícios directos de captar a big picture não se ficam pela geografia. Também na gestão do dia-a-dia esta capacidade de distanciamento, de que falava Brecht, é utilíssima para relativizar posições, adquirir realismo e assim discernir o curso dos acontecimentos.

O fotógrafo francês Yann Arthus Bertrand aplicou à fotografia esta técnica de vistas abrangentes, só possíveis planando sobre o planeta. É espantoso como tudo se torna lindo através da sua teleobjectiva, mostrando padrões minuciosos e rendilhados, formados pela explosão de cores e volumes que revestem a crosta terrestre. Não por acaso, os primeiros astronautas a chegar à lua ficaram fascinados com a beleza do planeta azul e incrédulos como era possível sofrer-se tanto, guerrear-se e destruir-se loucamente naquela esfera maravilhosa suspensa no cosmos que, de fora, se assemelhava ao paraíso.



Será que tudo se revela melhor a partir de cima?

Na pintura, procurou-se esta perspectiva ampliada, a partir de um ponto de observação distante, só que ao mesmo nível do episódio representado, como uma câmara fotográfica estrategicamente colocada. Embora sejam raras, algumas telas exploraram a perspectiva aérea. Coincidentemente, uma tem a ver com a Semana que ontem começou… Porque foi desse ângulo original que o conselheiro de Sta. Teresa de Ávila, o seu “pequeno Séneca” – S.João da Cruz – procurou desvelar um pouco o mistério da Cruz de Cristo:

Cristo Crucificado. Esboço de S. João da Cruz (1542-1591)

Sob um fundo quente, num dourado intenso, sacralizado como um ícone, o grande místico espanhol sugere-nos a perspectiva do próprio Deus, mais próximo da mente e do coração do Crucificado que dos algozes e da multidão acumulada no Gólgota (e que é a óptica comum das pinturas). Mas o misterioso momento, tão difícil de transpor para a tela, terá justificado a ousadia do artista místico.   

Impressionado com a obra-prima do século XVI, Dali (1904-1989) encontrou inspiração para os seus estudos em redor do tema. Na versão surrealista, Cristo perde a luz calorosa do ouro quinhentista, irrompendo numa solidão total, selada pela escuridão profunda que parece ter-se apoderado da face da terra. Pretendia-se pintar a hora das trevas. Embora estejam omissos os sinais da tortura brutal, ressalta de forma quase palpável a dor psicológica, afectiva e anímica.

Fiel ao surrealismo, a obra de Dali desdobra-se numa dupla representação de momentos distintos (apesar de se cruzarem ambos na vida de Jesus), com significados aparentemente antagónicos, apesar do jogo de luz seguir o percurso do sol: avançando do poente para o breu nocturno. Na zona de baixo, escapando à noite da Cruz, somos transportados para um cenário incrivelmente sereno, talvez junto ao lago das grandes pregações de Jesus – o Tiberíades. Surge num efeito de flash-back para uma fase anterior à da morte, onde a paz silenciosa das águas do lago contrastam com o silêncio espesso e tenebroso de Sexta-feira Santa, pintada na parte superior da tela. Também nisto, a obra do século XVI diverge substancialmente da visão de Dali, relevando uma hora, em simultâneo, dolorosa e já misteriosamente gloriosa, prefigurada pelo dourado poderoso do fundo, raiado de uma luz límpida e magnífica.

A solidão em Dali parece mais sofrida, esmagadora e estéril que a solidão sacrossanta e fecunda em S.João da Cruz, onde a riqueza multifacetada da Crucifixão consegue suplantar a dor e o abandono do Condenado, apesar da imensa dor e do abandono das 12 horas de agonia, até ao último sopro de vida.

Réplica de Salvador Dalí à pintura de S.João da Cruz.
1951,  Museu e Galeria de Arte de Kelvingrove em Glasgow.
Óleo sobre tela (205cm x 116cm), cuja ideia disse ter-lhe sido revelada num sonho,
assim como a necessidade de representar Cristo num ângulo extremo,
semelhante ao de S.João da Cruz.

Boa Páscoa, com o sentido primaveril da tela do século XVI, em que da semente insignificante e perdida na terra pode jorrar vida em abundância: da planta ao botão, da flor ao fruto… iluminados a partir de dentro, por uma luz límpida e magnífica.

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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