02 julho 2013

Das salas de jantar

Todo o bom néscio se arroga detentor de teorias imbatíveis, ferozmente blindadas aos argumentos alheios. Não será em mim que surgirá a excepção que confirma a regra. 

Em certa medida, talvez nada tenha contribuído tanto para o fim de uma espécie de civilização como o desaparecimento da sala de jantar. Sou sensível ao fim da copa, essa antecâmara onde os alimentos passavam de um estado de manufactura associado aos odores, aos trens de cozinha, aos truques do tempero, para um estado de pré-consumo, aguardando o momento de adequada revelação. A copa era uma espécie de purgatório, sendo que a mesa da refeição era o céu, e a cozinha era o que era. Sou ainda sensível ao fim dos escritórios patriarcais em casa, espaços míticos forrados a madeiras exóticas e encadernações valiosas onde, frente a um tampo pouco mais do que vazio, o chefe de família - quando o conceito não era um desuso - determinava o rumo da barca caseira. O escritório era uma espécie de santuário, mas a religiosidade tem vindo a percorrer caminhos de amargura.

Se a modernidade sobreviveu bem ao fim das duas divisões acima citadas, nunca se recompôs do fim das salas de jantar. O erro cometido por arquitectos e mestres de obras, agremiações arvoradas em representantes das tendências sociológicas, paga-se bem caro. A sala de jantar era infinitamente mais do que uma assoalhada onde cadeiras em número variável rodeavam uma mesa de geometria a gosto. A sala de jantar era o local da partilha do dia que findara, da educação no debate,  do planeamento dos vários futuros, das horas certas, da contenção e do respeito pelos alimentos. 

A voragem dos dias resumiu a refeição a algo necessário ao bem estar físico, pelo que se cumpre essa tarefa em pé, agachado frente a um tabuleiro, de olhos absortos numa televisão, sozinho, meia hora antes ou depois do resto da família. O fim da sala de jantar ditou o fim da convivialidade à volta dos pratos de família, das receitas apuradas por patroas e cozinheiras superiores às lutas de classe, porque um ponto de espadana requer mestria, não exige berço. A conversa, no seu sentido mais nobre, foi a primeira vítima deste suposto progresso habitacional.

O mundo moderno, esse espaço humano bizarro avesso ao silêncio, à introspecção - e à regra - tem horror à repetição, vendo-a como uma monotonia incoerente com o desejo actual de alegria, contentamento, facilidade, leveza. Os dias têm de ser únicos, irrepetíveis, distintos. A sociedade actual esquece-se que, como diria Aristóteles, somos o que somos repetidamente, pelo que o mérito não está na acção e sim no hábito. Uma sala de jantar é o local privilegiado da repetição. E, no entanto, a palavra repetição não deve entender-se como fazer igual, mas como fazer memória, e para isto são necessários rituais - os rituais da refeição. Repetir estas práticas é assegurar, na expressão feliz de Michel Tournier, a ordem inalterável do dia a dia, garantindo a conservação dos ritos culinários e manducatórios que conferem às refeições a sua dimensão espiritual.

Todo o bom néscio se arroga detentor de teorias imbatíveis...

JdB   


2 comentários:

  1. como gosto destas suas coisas...

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  2. Como é bom ouvi-lo pensar!
    Subscrevo a sua teoria de dar à sala de jantar outro poder!
    Beijinhos

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