Numa segunda fase, perpassa
na película a crescente admiração perante aquele homem único! A roçar o
indizível. Aliás, nas entrevistas gravadas, os silêncios mansos de Rodriguez
ainda impressionam mais do que o seu discurso telegráfico e muito depurado.
A história invulgar do talentoso
artista que, só por acaso (se houver acasos…),
acabou por ser relançado e reconhecido em vida, quando menos esperava, está
longe de esgotar o mérito do filme, que nos desvenda um ser humano colossal!
Sim, um coração grandioso e cheio de sabedoria, um filósofo simples, um poeta
maior, na senda raríssima dos génios humildes. Significativamente, um dos promotores
discográficos, inquirido três décadas mais tarde, recorda os contactos com
Sixto, no final da década de 60: o sexto filho de imigrantes mexicanos, com ar
de sem-abrigo, combinava encontros em esquinas de ruas, aparecendo do nada, à
hora marcada. O primeiro embate aconteceu numa noite enevoada, onde os promotores
o foram ouvir num bar igualmente envolto em nevoeiro, provocado pelo fumo espesso
do tabaco. Quando descortinaram um vulto escuro com chapéu de abas, de onde
vinha uma toada linda, nem queriam acreditar que tocava de costas para o
público, escondido no canto da sala. Dir-se-ia empenhado em ser apenas uma presença musical, um som em
estado puro… como profeticamente acabou por ser, fazendo furor em África e na
Oceânia, apenas através das suas baladas lindas, inspiradoras da revolução
anti-apartheid entre os afrikanders.
É um facto que estou a
começar pelo fim. Simplesmente, é tão assombroso cruzarmo-nos com pessoas deste
calibre, que não dá para correr o risco de perder o melhor. Seria equivalente a
falar de montanhismo sem começar pelos Himalayas.
Os repórteres e os
empresários da música pop, que se cruzaram com ele nos idos anos 70 e aqui testemunham,
25 a 30 anos depois, confirmam-no à exaustão, de tal forma Rodriguez falha em
toda a linha o padrão típico das super stars. Inacreditável, como assume um dos
jornalistas. No início, fica a dúvida se não será uma pose estudadíssima e
astuta, apostada na máxima originalidade. Mas rapidamente se percebe que o
músico-poeta está muito para lá dos que conseguem ter ideias e disparar
respostas out of the box. Sixto vive,
fala e sente num registo tão profundo e, simultaneamente, tão simples, que não caberia
em nenhuma box, rasgando os limites
comuns. Apetece aplicar-lhe aquele dito hábil de um Embaixador brasileiro sobre
o seu país: «As pessoas lhe dizem: O Brasil está
à beira do abismo! Depois, você olha pró abismo e o Brasil não cabe» (Vernon
Walters, em conversa com o Embaixador português José Cutileiro, que o cita). Também
para Rodriguez são demasiado curtos
os perfis conhecidos.
A dada altura do filme, vemos
uma manchete muito expressiva a apresentá-lo como «In America zero in South Africa hero»! Eloquente a dar voz à
mentalidade reinante, fixada no êxito, mas inadequado para retratar Sixto, que se
mantém igual a si próprio (provavelmente, desde que nasceu), sem se deixar
definir por sucessos ou insucessos! A serenidade em palco é a que mostra em
casa, ou no anonimato das avenidas cinzentas de Detroit, ou nas suites dos hotéis
de cinco estrelas. Não são as aclamações, nem os reveses, nem os índices de
popularidade, que o movem.
Impressiona (a nós!) que
continue tão confiante e firme, depois de tudo o que lhe aconteceu, numa existência
sulcada pelo aparente fracasso humano. Pobreza, desafios falhados e sonhos
desfeitos – em novo, na música; mais tarde, na política – parecem resumir a
trama da sua vida, onde irrompem breves surtos bem-sucedidos, como os concertos
esgotados em estádios de futebol… numa segunda fase da vida, já na idade da
reforma. Nenhuma circunstância – boa ou má – lhe altera o semblante, sempre paciente
e seguro, modesto e levemente iluminado por um sorriso suave, que só os simples
– na acepção mais plena da humanidade – atingem. Essa sim, uma proeza ao
alcance de pouquíssimos!
O seu colega de trabalho,
nas obras, di-lo muito bem, salientando igualmente outro traço incrível de
Rodriguez – a sua capacidade de tornar belo toda a realidade de betume e
marginalidade que o rodeia. No fundo, corporiza a grande conclusão de
Dostoievski: A beleza salvará o mundo. Pelo menos, o coração do próprio…
Citando
o tal colega, Rick Emmerson: « He had this kind of magical quality
that all the genuine poets and artists have: to elevate things. To get above the mundane, the prosaic. All the
bullshit. All the mediocrity that's everywhere. The artist, the artist is the
pioneer.
What he's demonstrated, very clearly, is that you have a choice. He took all that torment, all that agony, all
that confusion and pain, and he transformed it into something beautiful.
He's like the silkworm, you know? You take this raw material, and you transform
it. You come out with something that wasn't there before. Something beautiful.
Something perhaps transcendent. Something perhaps eternal. Insofar as he does
that, I think he's representative of the human spirit, of what's possible. That
you have a choice.»
Pegando neste desabafo, o realizador
– que sintetiza esta produção como the amazing story of Rodriguez – lança-nos o desafio: "And this has been
my choice, to give you Sugar Man (o documentário)". Now, have you
done that? Ask yourself.»
Ao
recordá-lo, o grande mentor da Motown Records e outros produtores dos anos 70, tecem-lhe
os maiores elogios, enaltecendo o conteúdo das suas músicas, com letras lapidares.
Clarence Avant não hesita em colocá-lo no top ten dos génios que conheceu, à
frente de Bob Dylan, para apenas citar um dos mais badalados ali referidos. Os
próprios títulos dos álbuns e das árias dão uma ideia do seu estilo arrebatador.
Títulos
de discos: Cold Fact (1970); Coming From Reality (1971); After the Fact (1976).
De músicas: I wonder; Only good for Conversation; Crucify your mind; This Is Not a Song, It's an
Outburst: Or, the Establishment Blues; Inner City Blues.
Todos consideram inexplicável
o motivo por que Rodriguez não tem a carreira meteórica para que parecia
fadado, nos anos 70. Limitam-se a registar este cold fact. Também nisso, a sua história é misteriosa. Apenas a
música conta e ele procura ser um fiel porta-voz do som, sem fazer pesar a sua
personalidade, biografia, fait-divers
e todo o folclore que faz pairar uma aura especial em torno das pop-star. Inclusive o sucesso
clandestino e incrivelmente exuberante entre a juventude afrikander, cansada do
apartheid, entra no mistério bem narrado no filme, não calhando estragar o
suspense...
A própria génese do
documentário é algo misteriosa, partindo do iPhone de um realizador sueco de 35
anos (Malik
Benjelloul) que, em 2006, descobriu
na Cidade do Cabo, o caso de um músico norte-americano mítico na África do Sul
e desconhecido no seu país natal. Sem financiamentos, lança-se na rodagem do
filme, percorrendo várias épocas e diferentes continentes, no afã de montar um
puzzle singular, que lembra o talento escondido de Rodriguez, com uma
existência em constante lusco-fusco. À falta de imagens de arquivo, Benjelloul completa
os cenários com gravuras e aguarelas muito expressivas, que dão um fio condutor
à narrativa.
Quando, nesta
mega-investigação do século XXI, os repórteres o procuram e esbarram com as
filhas, volta a impressionar o testemunho que dão sobre a figura tão rica,
interiormente, de um pai empenhado em proporcionar-lhes uma educação artística
de primeira água, embora fossem muito pobres. Frequentavam museus, exposições,
concertos, habituando-as a uma actividade cultural intensa que, segundo
comentava uma das filhas, comovida, era completamente atípico numa família sem
recursos. Faz todo o sentido que, a dada altura da vida, tenha intercalado o
árduo dia-a-dia nas obras com aulas de filosofia, na universidade.
O seu dom para desencantar
beleza na paisagem descaracterizada e feia de Detroit acabou por ecoar
além-fronteiras, despoletando (sem o saber, na altura) uma onda de indignação, que
recorreu à força espantosa da sua música para lutar contra a realidade dolorosa
e feiíssima do apartheid. A ponto de fazer história na sua erradicação,
confirmando o impacto surpreendente da sua obra artística, capaz de produzir efeito
a milhares de kms de distância e sem outra presença para além do vinyl! Nisso,
Sixto seguiu a sua vocação e pelo som puro foi despertando boas-vontades e instigando
uma revolução de mentalidades crucial. Vidas assim superam as melhores ficções.
Dificilmente se encontra
beleza comparável à que emerge do coração humano. Sixto Rodriguez sugere-nos o
caminho…
Excerto
do programa televisivo The Jeffprobbs
Show:
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
_____________
(1)
FICHA TÉCNICA
Título original:
|
SEARCHING FOR SUGAR MAN
|
Título traduzido em Portugal:
|
À PROCURA DE
SUGAR MAN
|
Realização:
|
|
Argumento:
|
|
Co-Produção:
|
Red Box Films, Passion Pictures, Canfield Pictures
|
Produtores:
|
Dennis
Coffey, Mike Theodore
|
Banda Sonora:
|
Sixto
Rodriguez
|
Duração:
|
86 min.
|
Ano:
|
2012
|
País:
|
Suécia, Reino
Unido
|
Elenco:
|
Os próprios, incluindo Sixto Rodriguez em diferentes épocas, os investigadores: Stephen 'Sugar' Segerman, Dennis Coffey, Mike Theodore, etc.
|
Local
das filmagens:
|
EUA: Detroit, África do Sul
(Cape Town, etc.), Inglaterra
|
Site oficial:
|
http://sugarman.org
|
Premiado com Óscar
e BAFTA
I WONDER
I wonder how many times you've been had
And I wonder how many plans have gone bad
I wonder how many times you had sex
And I wonder do you know who'll be next
I wonder I wonder wonder I do
I wonder about the love you can't find
I wonder how many times you've been had
And I wonder how many plans have gone bad
I wonder how many times you had sex
And I wonder do you know who'll be next
I wonder I wonder wonder I do
I wonder about the love you can't find
And I wonder about the loneliness that's mine
I wonder how much going have you got
And I wonder about your friends that are not
I wonder I wonder wonder I do
I wonder about the tears in children's eyes
I wonder how much going have you got
And I wonder about your friends that are not
I wonder I wonder wonder I do
I wonder about the tears in children's eyes
And I wonder about the soldier that dies
I wonder will this hatred ever end
I wonder and worry my friend
I wonder I wonder wonder don't you?
I wonder how many times you been had
I wonder will this hatred ever end
I wonder and worry my friend
I wonder I wonder wonder don't you?
I wonder how many times you been had
Concordo inteiramente. Dos bons - e inspiradores - filmes que tenho visto nos últimos tempos. Bjs pcp
ResponderEliminarQuando a câmara "apanha" uma pessoa como Sixto, torna-se mais fácil transcender a mediania e produzir um filme lindo. Bjs, MZ
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