Diz-nos o bom senso, a sabedoria popular - ou uma compreensível prudência humana - que não devemos voltar aos sítios onde fomos felizes. A minha forte veia nostálgica impele-me no exacto sentido contrário: gosto de regressar aos locais onde a felicidade foi companhia duradoura, ainda que semelhante a uma folha caduca. Todo o nostálgico é um masoquista?
Sábado passado atravessei um Alentejo claro, abafado, quente, a bater, aqui e ali, nos 40ºC, para retornar ao local onde durante muitos anos passei o mês de Setembro. Resumo o raciocínio em poucas palavras: voltei a um dos sítios onde fui feliz. Revisitei a entrada enganchada para os carros que sobem a ladeira; ao percorrer a estrada de terra batida voltei a ouvir as vozes de comando e proibição; calcorreei a mata onde fumei cigarros clandestinos sem filtro, onde participei em corridas de barcos que mais não eram do que bocadinhos de cana, onde joguei um mau ténis; entrou-me de novo pelos ouvidos o poema que dizia que saía Santo António do convento... que tanto se recitou no adro; recordei histórias em que infligi um terror em muito pouco superior ao que sentia; rezei na capela e sentei-me nos claustros onde no jogo das raquetes pequeninas perdi quase sempre.
Não voltei a um local propriamente dito. Com a alma cheia de uma lembrança longínqua, voltei ao lugar geométrico da felicidade veraneante de um miúdo que, só muito mais tarde, perceberia a importância daqueles verdes anos. Foi preciso crescer os mais de quarenta anos que me separam da primeira chegada para discernir o que era o setembro do meu contentamento. Olhar para trás nem sempre é um exercício doloroso de constatação das inevitáveis perdas; por vezes é encontrar a explicação para as coisas, dar uma resposta a uma pergunta inconsciente de décadas. Por vezes é apenas reconhecer que a vida é uma eterna procura, mesmo que no momento desconheçamos do quê.
Às pessoas que me começaram a receber no longínquo ano de 1971 - e que me receberam agora - sou devedor do que sei exprimir, mas também do que não conseguiria por em palavras. Há sensações indizíveis, e mesmo aquelas que se exprimem num sintaxe correcta têm uma amplitude que é maior ao sair de nós, porque ao destinatário chegam amortecidas por sensibilidades próprias. Poderia agradecer uma inesgotável simplicidade de que só algumas pessoas são capazes; poderia agradecer a compota de amoras, os jogos de gamão; poderia agradecer as idas à vila, a ausência feliz mas efémera de televisão ou de electricidade; poderia agradecer a água da fonte, as bolas batidas contra uma parede massacrada, o cheiro dos corredores iluminados a petróleo, as sombras terríveis projectadas por uma chama dançarina; poderia agradecer o carteiro que trazia emoções, mais do que cartas, e as aventuras radicais que nos levavam a uma badajoz que já se adivinhava feia. Poderia agradecer, por fim, as pessoas que entravam e saíam, as pessoas que partiram e que deixaram saudades, as pessoas que ficaram e que me dão o gosto de uma amizade que se rememora nas palavras comuns. Agradeceria tudo - que muito ficaria por agradecer.
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Deixo-vos com um hit de 1971, ano em que entrei pela primeira vez num local onde fui imensamente feliz, com uma felicidade que só soube entender quando a contabilidade da vida já transbordava de ganhos e perdas, tantas vezes em proporções injustas.
JdB
Bem verdade, só percebemos a importância de algumas coisas muito tempo depois!
ResponderEliminarAbr
fq
Nós é que agradecemos que continuem a fazer parte das nossas vidas e destas lembranças que vocês ajudaram a construir(às vezes com um bocadinho de medo!!!) É sem dúvida um sítio muito especial! E é muito bom sentir que também é especial para mais gente.Voltem sempre. Bjs. Puci
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