12 agosto 2013

Vai um gin do Peter’s?


A primeira longa-metragem do luso-descendente, Ruben Alves (R.A.) está a ser um sucesso em França, Bélgica, Suíça, Luxemburgo e agora em Portugal, desde que estreou, há uma semana. «GAIOLA DOURADA»(1)  é um filme com alma, e alma  portuguesa, arriscando dar um retrato delicioso da vaga de emigração portuguesa dos anos 60. Gente de coragem, bem pobre e pouco qualificada, que singrou a pulso no exigente mercado francês (e não só), distinguindo-se pelo profissionalismo, capacidade de adaptação, tenacidade e uma paciência próxima do heróico. O que aturaram e aturam, é obra! Não por acaso, numa das partes divertidas desta comédia light, com saídas lapidares, é uma francesa dos quadro costados (só podia!) que se faz passar por prima da típica porteira emigrante (Rita Blanco) para responder, à letra, à condómina mais perfeccionista e cansativa de Paris, dizendo-lhe tudo o que os emigrantes gostariam de lhe responder, se pudessem. Mas só até ao dia… como nos mostra o filme. Porque nada mais imprevisível do que a própria vida, que dá tantas voltas. Surpreendente!

Mistura feliz de pessoas com percursos,
origens, gostos e hábitos diferentes. 

A lembrar vagamente um fresco sociológico, ao jeito de um Almodôvar em versão benigna e até respeitosa, percebe-se por que o realizador dedica a obra aos seus pais e à comunidade portuguesa radicada em França. Percebe-se por que aqueles trabalhadores dedicados e talentosos são o sustentáculo do patrão, fiáveis e rigorosos como um pêndulo suíço. O maior pânico dos chefes é antever o dia em que os seus mais fiéis colaboradores resolvam debandar para outras paragens. É com mil atenções que a família do empresário francês lida com a sua autoritária empregada emigrante, uma governanta à antiga, mal disposta, que gere a grande casa parisiense com pulso de ferro... Incontestada, claro. Até as falhas (de gargalhada), aqui e ali, são engolidas pelos patrões, cuidadosíssimos na gestão do relacionamento com a sua bonne de estimação – uma Maria Vieira sempre espontânea e cómica, no seu estilo meio brejeiro – entre companheirismo, aceitação máxima e obediência total a Rosa. Tudo muito pragmático, para garantir um final feliz a todos.   

A voz de comando em casa dos franceses.

Claro que há uma boa dose de fantasia, porque estamos num registo estilizado e favorável para as várias partes. Até o francês dos emigrantes é invulgarmente bom, da pronúncia à gramática, apesar das frases fantásticas numa algarviada de línguas: «Tout va bien, mana». Assim como tudo o que toca a Maria, quase demasiado comedida e soft. Simultaneamente, também há uma boa dose de realismo e autenticidade nas personagens e nas situações, permitindo-nos reconhecer e enternecermo-nos com os perfis que ali contracenam. Como diz R.A.: «O que me inspira mais é a própria vida.»

O título inesperado do filme vem da herança imprevista a convidar Maria e José a regressar à casa de família, no Norte de Portugal e largar a sua nova terra, na capital gaulesa. Mas será que os franceses e portugueses de Paris os deixam partir? Fazem tanta falta, que todos tentam encurralá-los numa gaiola dourada. Como se fosse possível – haverá sítio mais dourado que as margens do Douro?
Num ritmo rápido, por entre cenários pensados ao detalhe, sucedem-se gaffes e gags divertidíssimas, a mostrar as disparidades de código e convenções entre povos e classes sociais distintas, mas sem beliscar uns e outros. Perpassa antes uma atitude de respeito e até carinho. Nas palavras do realizador, actor e co-argumentista, percebe-se que quis «contar uma história que vem do coração». A vontade de bom entendimento entre todos torna o filme luminoso, positivo. Caberá depois a cada um ver com os seus próprios olhos…

O célebre fim-de-semana num hotel de charme francês, perdidos entre uma cama king size e a coreografia rigorosa de um room service encriptado! Ele que só queria ver o Benfica-Porto…

A baralhada com a história e a língua portuguesas, dá cenas hilariantes.

Respira-se bonomia e uma incrível onda de ternura, que desmancha tudo e todos, sobretudo através da atitude suave e conciliadora da incansável porteira, sempre pronta a ajudar. A escolha de Rita Blanco para o papel foi certeira, como percebeu o realizador: «Ela na comédia é muito boa, porque consegue pôr muita verdade e ternura no olhar da personagem.» Isso ajuda a explicar o êxito do filme junto de todos os quadrantes da sociedade francesa, a começar pela classe alta e incluindo também as comunidades árabes magrebinas.

Mesmo a figura problemática da filha (a menos compreensível para a equipa francesa, segundo R.A.), que tem dificuldade em assumir as suas raízes lusas, de origem humilde, não afecta o tom descomplexado do conjunto, sendo apenas um elemento adicional a enriquecer a galeria de perfis psicológicos. Aliás, também é das que mais evolui, ao longo do filme.

A filha da porteira portuguesa e o filho do patrão francês, com o ex-namorado de Paula atrás – Ruben Alves, também realizador e co-argumentista.

R.Blanco e Joaquim de Almeida têm um desempenho primoroso no papel do simpático casal emigrante, encarnando a típica concierge casada e bem casada com o mestre de obras, adorados pelos respectivos patrões. E demasiado requisitados… Genericamente, o elenco de actores está muito conseguido, assim como o guarda-roupa, a facilitar a rápida caracterização das personagens e dando azo a momentos hilariantes. A primeira escolha do casting português foi o J.Almeida, a partir de um encontro providencial, num cocktail em Cannes, onde o actor teve uma saída que R.Alves achou a expressão típica e cómica da portugalidade mais comum: Então, não há aqui nada para comer? Tinha de ser o José do casal protagonista. Até porque lhe encontrou «uma parte comovente», pouco a ver com os papéis de duro que são a sua imagem de marca. Por junto: «todos eles (actores lusos) têm Portugal dentro deles», pelo que a aposta estava ganha.

A algazarra branda da casa portuguesa.

Não podia faltar o fado. Pela voz de Catarina Wallenstein, acompanhada pela guitarra portuguesa, foi uma cena filmada em directo, numa pequena casa de fados de Lisboa, sem reposições nem montagens. Mal R.A. gritou o “corta” à equipa, nem queria acreditar que estava lavada em lágrimas. E todos franceses. Tinham-se deixado embalar pela emoção de um fado entoado com a convicção das canções muito antigas, que se perdem na voragem dos séculos! Pode nem se perceber a letra. Mas adivinha-se-lhe a intensidade. E neste, pede-se para viver em Portugal os momentos finais da vida… Resulta ainda mais tocante por a surpresa do serão fadista ter sido preparada e oferecida a Paula (filha de Maria e José) pelo seu noivo francês.

A frescura do volte-face do argumento parece a história do Jacinto de «A Cidade e as Serras», contada do avesso. Apesar da enorme decalage temporal e das óbvias diferenças narrativas, há um movimento de coração, uma conversão interior, que tem algumas semelhanças. Aliás, do lado francês, as afinidades com Jacinto na chegada aos socalcos mágicos do Douro, ou o deliciar-se com os pastéis de bacalhau de Maria, são por demais evidentes. 

Vista fabulosa da Quinta dos Malvedos (família Symington),
no Douro, onde termina o filme.

A proximidade e a excelente articulação entre todos os elementos envolvidos nesta produção, dos actores das duas nacionalidades à equipa técnica, são outros dos trunfos de R.A., que gosta de funcionar em grupo: «Fui fazer um curso de teatro mas mais para ter este ambiente que eu adoro do grupo, (…) acredito num sentimento muito agradável… de estar a trabalhar com os outros, olhar os outros…».
O tempo foge e nem queremos acreditar que o filme se esgota demasiado depressa. Dá gozo gostar de uma obra onde se respira tanto de Portugal. Incisiva, sem ser excessivamente analítica. Com sentido crítico, mas sem carga negativa. Leve sem excesso de simplismos. Caricatural mas esquivando-se ao histriónico. Sente-se o que explica R.Alves: «Tentei dar uma alma portuguesa a este filme francês. Talvez seja o filme francês mais português de sempre.»

 A sala esgotada (todas as noites), no Corte Inglês, não resistiu a bater palmas, no final, com pena que o realizador não as pudesse ter ouvido em directo. Parte-se com vontade de festejar e transpor a tela para nos juntarmos ao animado grupo luso-francês, na mesa comprida da quinta do Douro, sob a luz dourada e quente do Verão nortenho, nas bordas daquele rio de sonho. Ao som de Uma casa portuguesa, com certeza, é um programa a saber a férias.

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA TÉCNICA

Título original:
LA CAGE DORÉE
Título traduzido em Portugal:
A GAIOLA DOURADA
Realização:
Ruben Alves
Argumento:
Ruben Alves e Hugo Gélin
Produzido por:
Zazi Filmes, Pathé, TF1
Fotografia:
André Szankowski  (brasileiro residente em Portugal)
Banda Sonora:
Rodrigo Leão; supervisão de Raphael Hamburger
Duração:
90 min.
Ano:      
2013
País:
Portugal, França
        Elenco:

Rita Blanco (a porteira, Maria)
Joaquim de Almeida (o mestre-de-obras, José)
Roland Giraux (o empresário e patrão de Jose, Francis Cailaux)
Chantal Lauby (a mulher do empresário)
Lannick Gautry (filho do empresário)
Bárbara Cabrita (Paula, a filha do casal português)
Maria Vieira  (Rosa, a empregada do empresário)
Jacqueline Corado (irmã de Maria)
Ruben Alves (Miguel, a ex-namorado de Paula)
Local das filmagens:

Paris, no Douro: Quinta dos Malvedos (da família Symington)

Site oficial:

http://www.pathefilms.com/film/lacagedoree


Trailer disponível em www.youtube.com/watch?v=uwXp0ZhXAoY&feature=player_embedded

2 comentários:

  1. Bem dito, tem algo do Almodovar, sim. Achei um filme muito engraçado, muito nosso, feito com o coração (como vi algures escrito). Bjs. pcp

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  2. O próprio realizador diz que os filmes lhe saem do coração... Por esta comédia soft, percebe-se que será assim. Bjs, MZ

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