[texto enviado a uma irmã, enviuvada recentemente, surpreendida pelo que aconteceu e muito temente pelo futuro]
A morte, na expectativa que o
surpreendido abandonado dela faz, era suposto gerar o
apagamento total do desaparecido, arrastando com ele o seu todo, apagando-se do
presente, sepultando-se no jazigo da memória.
Porém, é enorme a surpresa, a
desorientação, a perplexidade, quando se percebe que a morte eclipsou
exclusivamente a pessoa, o ser concreto, real, tangível, deixando todavia
intocado, ileso, indiferente ao sucedido, o "meu" amor por ele, a
"minha" necessidade dele, o "meu" sonho dele, a
"minha" essência dele e nele, a "minha" existência justificada
a existir nele.
Afinal, a morte não me muda a mim,
apenas o muda a ele, extingue-o, mas a mim, mantém-me exactamente como na
véspera. Amo hoje como antes do passamento. Mas amo em modo absoluta e
irremediavelmente solitário.
A dor que se vai sentindo a partir do
acontecimento vai tendo sucessivas faces: no primeiro momento prevalece
a pena por ele, a ternura e solidariedade pelo seu sofrimento, pelo seu
fim, o bem querer-lhe, é viver a dor alheia; no segundo momento destaca-se a
mágoa pelo que não se vai viver, pelo que não vai acontecer, pelo futuro
perdido, pelo jamais consumado; segue-se, depois, a etapa do ajuizamento, da
recriminação, do remorso, a martirização pelo tempo e oportunidades julgadas
perdidas, aquilo que devia ter sido e, por fim, desagua-se na constatação,
no confronto com a evidência de que a morte dele, acima de tudo, significa que
"eu" perdi o tempo, o lugar e o modo de eu existir. Estou abandonado,
chamo para o silêncio, ergo os braços para o vazio, caminho para nenhum lugar,
olho para o breu, choro para as pedras, falo para o vento, espero para o
desespero, sonho para o nevoeiro, dou-me ao vácuo, abraço a água. Sou o tudo,
na masmorra do nada.
Não há como fugir desta etapa, não há
consolo para o teu hoje. Não há promessas de amanhãs radiosos que agora te
animem, não há oásis cuja visão te salve, não há futuros que operem já o
milagre da felicidade.
O que existe é uma situação presente,
devastadora e que te desespera.
O que podes fazer? Perguntar-me-ás.
Pois bem, se é certo que não podes mudar
a situação, as circunstâncias do teu presente, tens, porém, a suprema liberdade
de escolher e assumir a tua atitude
perante essas mesmas circunstâncias.
Tens o direito e o poder de converter o
teu presente numa atitude ao serviço do "sentido" que entendas
atribuir à tua vida, a esta vida que tens e és.
Busca em ti e por ti um novo sentido
para a tua vida, qualquer que ele seja, e entrega-te a ele, à sua realização,
ao seu acontecimento, à sua perfeição.
Encontra a tua nova causa de vida, uma
razão para seres, e segue-a de modo fiel, total e empenhado. Age em cada dia,
em cada hora, em cada momento na busca da realização desse sentido. Encontra
uma direcção, um horizonte, um além, necessariamente fora de ti, nada busques
em ti ou para ti. A meta fixada tem de te ser estranha, acontecer fora do eu,
e faz o que tiver de ser feito para lá chegares.
Esquece-te de ti, faz-te serva de uma
causa que seja maior que tu.
A serenidade e a paz irão então
acontecer-te à medida que fizeres o caminho. Serão surpreendentes os efeitos
colaterais que te vão acontecer. Sem perceberes como ou quando, vais
encontrar-te a viver, a reviver.
Essa causa, o sentido, não tem de ser
extraordinário, invulgar, aparatoso, bombástico - qualquer sentido teleológico é
perfeito e suficiente para operar em ti a redenção.
Não estou a fazer retórica ou
malabarismo de "auto-ajuda", estou a partilhar a minha profunda
convicção de que só pelo sentido da vida é possível vencer as mais
sinistras circunstâncias que se nos deparem.
Tenho a certeza de que esta via te
libertará e não serás mais um todo na masmorra do nada.
Para sempre sofrerás pela morte do teu
marido, para sempre o amarás, para sempre o teu eu será nele, mas, apesar disso,
serás feliz.
Por hoje cuida do teu quotidiano, da tua
sobrevivência, mas por hoje começa também a servir o teu (novo) sentido.
* enviado por mão amiga
Bom texto.
ResponderEliminarJá Viktor Frankl dizia que (também) encontramos o sentido para a vida num grande desgosto. Aqui, como em muitos outros episódios de perda e dor, alivia-nos transformar a pergunta "porquê isto a mim?" em algo mais libertador: "para quê isto a mim?".
Na primeira pergunta olha-se para trás; na segunda olha-se para a frente.
Nada mais me resta do que lembrar-me de quem ficou, porque quem partiu está numa dimensão diferente onde, acredito, não há sofrimento.
No fundo (e carreguei no enter cedo de mais) repito menos inspirado o teor geral da carta.
ResponderEliminarEstou profundamente convicta de que a dor profunda, aquela que achamos que pior não pode ficar, a que nos abala nos mais profundo recanto da nossa vida e nos distorce por dentro e por fora, deve ser vivida até ao fim, até ao fundo do mais fundo, sem querer dominá-la, sem fugir dela, porque é aí, no mais escuro desespero que se acende a a compreensão e nasce a verdadeira inteligência, aquela que "sente" a vida, a nossa e a dos outros. É aí que a vida, verdadeiramente nos ensina. A não ser assim, a dor pode ter sido em vão.
ResponderEliminarv