Red & Murta (Fotografia de JMAC, o homem de Azeitão) |
Acordo sábado de manhã muito cedo, a meio de um
fim de semana em casa de amigos. É campo, e o silêncio é quase total. Não se
ouve ainda o cão que ladra ao transeunte, o roncar velho de uma motoreta desafinada,
o comboio cujo silvo longínquo já rareia. Num daqueles pensamentos
peregrinos que nos assaltam sem como nem porquê, lembro-me de alguém referir, num ano destes, o fascínio de ver o exercício da inteligência nos outros. Penso no tema, não só
genericamente, como também na forma como ele se aplica aos meus parceiros de
fim de semana: os diálogos, as interacções, as perguntas e as
respostas, os fascínios, as (in)coerências de comportamentos, os raciocínios, etc.
Estou certo de que cresci, como muitos outros
da minha geração, com uma ideia mais ou menos definida de inteligência, muito antes de se falar da emocional: rapidez de
raciocínio, cultura geral, capacidade para discutir sobre vários temas. Havia
ainda o humor, preconceito fortíssimo por onde cresci: um maçador poderia ser inteligente?
Não quereríamos que fosse, para justificar juízos prévios; só mais tarde
realizei que deveria falar-se de sentido
de humor, mais do que de divertimento.
Pode ser-se inteligente não se achando
graça a nada?
No domínio do lugar-comum, estou certo da minha
contribuição para o stock mundial: a
inteligência é uma característica, não é uma virtude. Verdadeiramente, só o
exercício para o bem dessa particularidade com que nascemos é que interessa. Se dermos as costas ao próximo e não encontrarmos formas de deixar o mundo um
pouco melhor, a inteligência pouco mais é do que uma altura acima da média, uns olhos azuis bonitos ou um cabelo que cresce com vigor: so what? Onde está o mérito?
Rodeio-me, como todos nós, afinal, de gente
inteligente - uns mais do que outros,
cada um com as suas facetas, que cada vez acredito menos em gente que não tem
inteligência alguma. Todos temos um campo na vida onde nos evidenciamos. Já conheci pessoas de quem se afirmava serem medianamente inteligente, mas que souberam gerar à sua volta um equilíbrio
e um bem-estar que seriam proeza de sobredotados. O difícil, por vezes, é
encontrar essas facetas, seja em nós próprios seja nos outros, porque o mundo mais próximo tende para uma certa formatação que nem sempre ajuda.
Retomo o tema, que me habita com uma
consistência de coisa certa que não encontra palavras. É interessante, de facto, ver como um outro exerce a sua inteligência: quais
são os temas que o estimulam e que aborda com facilidade e
motivação; quais são os que lhe provocam incómodos (por sensibilidade ou
desconhecimento) e dos quais foge, esfarrapando desculpas; como argumenta, como aceita o
contraditório, como encara e encerra a discussão -
é um jogo para ganhar ou um jogo para praticar? Ver também como olha para o
outro, como o enquadra, como lhe dá espaço, como abarca o mundo
naquele momento com os olhos ou, pelo contrário, se se ausenta de tudo o
resto, rodeado da sua própria voz. Ver ainda como gere as várias áreas da
sua vida, como ultrapassa as dificuldades, como trata vitórias e derrotas. Como escuta, como pergunta, como acolhe, como ajuda, como se interessa. Ver, por fim, como estimula a inteligência no seu mais próximo.
Não será este texto apenas uma
dissertação sobre feitios? Não gostaria que se reduzisse a isso, porque a
inteligência - e roubo o conceito - é uma faca de dois gumes: tudo depende por onde a agarramos. Se lhe pegarmos pelo sítio certo temos a capacidade de gerir as tendências que sempre existem dentro de nós.
Conhecer os outros - e as suas várias inteligências -, para além do desfocado do dia-a-dia, não é uma experiência sociológica materializada em estatísticas ou tendências. Tolstoi diria (o francês é um petit rien para quem me lê) que tout comprendre c'est tout pardonner. Não se trata aqui de perdoar o que quer que seja, embora tudo compreender seja o primeiro passo para muito aceitar. Observar o exercício da inteligência alheia é uma actividade munida de espelho. Olhar para os outros é encontrarmo-nos a nós próprios, apesar de todas as diferenças. E isso, estou em crer, é o primeiro passo de uma grande caminhada.
Conhecer os outros - e as suas várias inteligências -, para além do desfocado do dia-a-dia, não é uma experiência sociológica materializada em estatísticas ou tendências. Tolstoi diria (o francês é um petit rien para quem me lê) que tout comprendre c'est tout pardonner. Não se trata aqui de perdoar o que quer que seja, embora tudo compreender seja o primeiro passo para muito aceitar. Observar o exercício da inteligência alheia é uma actividade munida de espelho. Olhar para os outros é encontrarmo-nos a nós próprios, apesar de todas as diferenças. E isso, estou em crer, é o primeiro passo de uma grande caminhada.
JdB
Talvez a inteligência humanistica seja precisamente ser-se espelho do exercício do humano, transformar e devolver em luar a réstia que nos vai escapando pela alma, Se assim for, JdB tem uma inteligência com muita serventia.
ResponderEliminarObrigado.