Um aprendiz só perde
verdadeiramente o medo ao touro quando o enfrenta pela primeira vez, quando
sente fixarem-se sobre si os olhos do animal e se apercebe da sua investida. É
nesse momento decisivo, quando nada mais existe no mundo para além do homem e da
besta, que o temor desaparece. Não são as palmas, porque ele não as ouve; não é
o incentivo, porque ele não o sente; não é a oração piedosa que rezou minutos
antes num assomo de religiosidade supersticiosa, porque já não se recorda dela;
não é o amuleto, a medalha da virgem ou do desgraçado coração de jesus, porque
a alma lhes está imune. O que leva o aprendiz de toureiro - sonhador de jornadas
de glória, protagonista de tardes carregadas de cicatrizes - a vencer o medo do
touro é o enfrentamento do touro. Tudo o
resto são detalhes, pequenos nadas que adornam o sufoco.
Por semelhança de
raciocínio, talvez seja preciso ver-se a morte para se perder o medo à morte. Porque
a morte é para uns o que o touro é para outros: a perspectiva, mais ou menos
certa, de que o nosso tempo é finito, que tudo se pode jogar num fio de cabelo,
num instante de menos saúde derivado de uma análise estranha, de um golpe de
cornos que rasga a pele, dilacera a carne, entra por uma veia adentro num fúria
acossada.
Citemos um testemunho
anónimo, que é de anonimatos que se construíram palácios e catedrais, mas
também cemitérios infindos onde jaz uma multidão de corpos sem nome.
Eu vi a morte, não num animal feroz, não num
acidente iminente, nem sequer na forma de uma doença que nos habita e que a
ciência não sabe curar. Vi-a numa mão pequena, numa vida pequena. Vi-a nuns
dedos infantis que agarravam outra
vida quando ainda não tinham largado esta.
No meio estava a morte, naquela breve passagem de uma realidade que nem sempre
dominamos para outra realidade em que nem sempre cremos. Vi-a na dimensão
física de um rosto sereno, na impessoalidade de uma parafernália tecnológica
que nos revela números que decrescem até ao zero absoluto. Vi-a no vazio
árido cujo ar respirei, num deserto onde nada pode existir mas de onde tudo
pode nascer.
Ver a morte, essa águia
cujo grito ninguém descreve, é viver com ela na persistência da memória até
ao fim do tempo, até ao momento em que alguém passa a ser o espectador da nossa
própria morte. Só então a imagem se desvanece para dar lugar ao último abraço.
É nessa altura que a morte se materializa no nosso próprio corpo, e não no
corpo dos outros. O aprendiz, o perseguidor de quimeras, não mais esquecerá o dia
em que enfrentou o animal que lhe coube em sorte, porque nunca se esquece o
horror que vence a sensação de horror. Por isso, jamais se esquece a morte que
vence o medo da morte. Por isso, dirá ainda o testemunho anónimo, jamais esqueci o momento em que vi a besta à
minha frente.
Olhar para a morte não é
olhar só para a curva da estrada, lembrar o corpo desaparecido que dá
lugar à saudade, conjugar de forma tão exclusivamente, mas também tão dolorosamente adulta, a
expressão nunca mais. Olhar para a morte, vê-la chegar, senti-la nuns
dedos que perdem força, perceber que ela se instalou à espera de vencer e de
ser vencida numa fracção de instante não constitui uma fatalidade, mas abre uma
possibilidade. A morte para quem quase lhe toca pode ser só dor, mas pode ser
muito mais. Pode ser uma solidão dolorosa, a ausência de ouvidos que escutem, a
saudade que se crava como um espinho persistente; mas pode ser um farol num
nevoeiro persistente, pode ser uma oportunidade de redenção, pode ser a chave
certa para a criação da beleza.
***
Foi hoje,
mas há doze anos.
Todos os
dias podem ser o doloroso quatro de novembro, e todos os dias podem ser o
esperançoso quatro de novembro. Como olhamos para a morte? Como o acabamento de
tudo, ou como o princípio de algo? Como vemos o fim das coisas? Como uma morte
que termina uma vida ou como uma vida que nasce com a morte? Que importância
determinante damos às palavras “vida” e “morte”? Não será verdade que ambas
existem quotidianamente no vocabulário que usamos com os mais próximos, com os
sonhos, os devaneios, as desilusões?
Morreremos
como vivemos – em paz, em tumulto, desencontrados com o destino que nos liga ao
próximo. Viveremos, estou em crer, do mesmo modo que sobrevivemos à morte própria ou alheia, devastadora e sofrida. Somos o que a nossa alma manda fazer
no dia seguinte, em todos os dias seguintes, em todos os quatro de novembro
daqui até à eternidade. É por isso que uns olham para o céu e não vêem mais do
que luto, dor e saudade. É por isso que outros olham para o mesmo céu e, num relance pleno de esperança e certeza, vislumbram o
anjo que derrama o infinito pó do amor.
Foi hoje,
mas há doze anos, e a nossa vida continua a ser a tua presença.
JdB (em nome de todos os que se lembram, na memória ou no coração)
Abraço de muita amizade.
ResponderEliminarfq
Querido João, obrigada por continuar a pensar alto (com todos os seus significados)e a ser testemunho de tamanha esperança!
ResponderEliminarBeijinhos especiais
Querido João
ResponderEliminarObrigada pelas suas palavras de esperança! Lindo, o texto!!
Um grande beijo
Paquita
Beijinhos atrasados primo.
ResponderEliminarBeijinhos atrasados primo.
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