28 fevereiro 2014

Toda a arte é autobiográfica?

Quem me está mais próximo leu os dois livros que eu escrevi: um, em co-autoria, já publicado, e o outro que dificilmente verá a luz do dia. O primeiro era fortemente autobiográfico, o segundo tinha algumas pinceladas. Este segundo livro foi lido por meia dúzia de pessoas. Para além de outros comentários, mais do que uma pessoa afirmou o mesmo: o teu livro só tem pessoas boas. Dei por mim a pensar no tema. Como não sou escritor, não tenho grandes hábitos de construção elaborada de personagens. Assim sendo, saiu o que saiu....

A discussão não é de agora e não é disparatada: a arte é autobiográfica ou é totalmente extrínseca do seu criador? E a pergunta aplica-se a toda a arte? Isto é, conseguimos ver registos autobiográficos num romancista? E num poeta? E num escultor, num pintor ou num músico? Há num busto, numa tela ou numa pauta vestígios daquilo que foi a vida do criador, ou pode ser algo totalmente extrínseco e, nesse sentido, ser absolutamente (enfim...) impessoal?

(Parêntesis: quando um actor chora, quem chora de facto? É o personagem ou o actor? De quem são, verdadeiramente, as lágrimas que vemos correr por uma cara abaixo? De quem é a emoção que provoca o pranto?)

Aceitemos, por uma questão académica, que a arte - e nomeadamente a escrita - é autobiográfica. O que diz então de mim o facto de, no livro que permanecerá numa gaveta, só ter criado personagens boas, sabendo eu que não foi um processo totalmente racional? E sabendo eu, obviamente, que o mundo não se compõe de gente exclusivamente boa. O que diz isso da minha infância, dos meus genes ou do meu meio ambiente? 

Na peça de Shakespeare (que não li) o tio de Hamlet, depois de matar o pai, casa com a mãe (pai e mãe de Hamlet), usurpando o poder. Visitado pelos espíritos, Hamlet sabe que tem de matar o tio mas, ao longo da obra, nunca o faz. Este mistério (que o é, de facto) nunca teve resposta cabal. Há quem ache que Hamlet não teve oportunidade, há quem ache que havia por ali o complexo de Édipo. Hamlet, apaixonado pela mãe, quer matar o pai. Mas o tio já o fez, pelo que... No fundo, quem sofria do complexo de Édipo, que se desconhecia à época? Shakespeare ou Hamlet? Podemos confirmar, aqui, que há dados fortemente autobiográficos na obra?  

Num longo ensaio intitulado Leonardo da Vinci and a memory of his childhood, datado de 1916, Sigmund Freud discorre sobre a obra do cientista e pintor italiano. Durante quase tres mil palavras (a quarta parte do ensaio, de um total de seis) o pai da psicanálise disseca a Gioconda e o quadro chamado Santa Ana do Louvre (Santa Ana, Nossa Senhora e o Menino Jesus). No sorriso da Mona Lisa e no facto da idade de Santa Ana e da filha, Nossa Senhora, parecerem iguais, encontra fonte de explanação: o drama associado à rejeição da mãe (já que Leonardo, filho de uma relação irregular, foi viver com o pai e com a madrasta, uma segunda mãe), as memórias mais recônditas do pintor em que um abutre agitava a sua cauda junto à boca do artista, ainda bebé, o que seria um símbolo fálico, etc. Os mais entendidos em Freud saberão melhor do que eu do que se trata. Será isto a prova evidente (a acreditar-se, nem que seja em parte, na visão freudiana) que também num quadro há sinais do nosso subconsciente?

Talvez haja mais de autobiográfico nas nossas vidas do que aquilo que se pensa. Perceber o que somos e porque somos é um caminho interessante, desafiante e proveitoso. Seja num livro, numa poesia, num quadro a óleo - ou simplesmente na forma como encaramos um slow lento.  

JdB 

27 fevereiro 2014

Colar de pérolas (11)




Havia outro rapaz que coleccionava namoradas que escreviam canções. Ele também escrevia canções e elas, de certa maneira, como que eram criativamente "acendidas" por partilharem com o rapaz coisas que rapazes e raparigas partilham. As namoradas iam e vinham e, quando iam, passavam a bem-sucedidas escritoras de canções e, quando vinham, começavam logo a pensar que iriam, mais tarde, passar a bem-sucedidas escritoras de canções. De maneira que o rapaz deixou de escrever canções. E de coleccionar namoradas. Agora, é piloto de pequenos aviões. E escreve relatórios frios. A fina arte de jogar à defesa tem muito que se lhe diga.

gi.

26 fevereiro 2014

Diário de uma astróloga – [72] – 26 de Fevereiro de 2014

Júpiter em Caranguejo – Portugal é Mar


Adorei o novo mapa de Portugal que vai ser distribuído nas escolas. Que diferença do da minha juventude, que era em tons acastanhados mostrando as serras, os rios e até as linhas de caminho-de-ferro! O moderno mostra os Açores e a Madeira, e é predominantemente azul. E também é muito mais mediático porque tem um slogan: Portugal é Mar!



Apresenta a proposta extensão da plataforma continental que Portugal pediu às Nações Unidas para aprovarem e sublinha a dimensão da zona económica exclusiva (ZEE). A Ministra da Agricultura e do Mar explica a razão de ser do slogan  “nosso pais será 97% mar” …. caso as Nações Unidas aprovem o pedido de Portugal.

Portugal Continental tem actualmente uma ZEE de 327.667 km2, os Açores 953.633 km2 e a Madeira 446.108 km2, perfazendo um total de 1.727.408 km2. A 11 de Maio de 2009, Portugal apresentou um pedido de extensão destas áreas reivindicando mais 2 milhões de km2.  Este pedido baseia-se na extensão da plataforma continental à volta dos Açores e da Madeira e mantém a área referente às Ilhas Selvagens, ponto em que é contestado por Espanha. Portugal considera-as ilhas habitadas com direito a ZEE, mas a Espanha chama-lhes rochedos sem direito a ZEE. O Presidente Aníbal Cavaco Silva está a levar este assunto muito a sério e, além de hoje mesmo estar a fazer o discurso de encerramento no Cimeira Mundial dos Oceanos em São Francisco, visitou as Ilhas Selvagens no Verão passado e até ficou lá a dormir uma noite.

O novo mapa dá como garantida a aprovação do pedido o que traria a Portugal uma ZEE de 3.877.408 km2, isto é, a décima maior do mundo, superior à do Brasil!  


Estarão as estrelas a favor deste projecto ambicioso e expansionista que redefine os limites da nossa área de jurisdição e terá impacto favorável na economia portuguesa? Passo à análise astrológica:

1. Júpiter é primeiro ponto de referência porque simboliza expandir. Passa um ano em cada signo e, desde o dia 26 de Junho de 2013, está no signo de Caranguejo. De entre todos os signos, e considerando a regência natural de Caranguejo ao Fundo do Céu, é o signo mais relacionado com a Pátria. Júpiter em Caranguejo = expansão da pátria.

2. Seguidamente, olho para a carta de ingresso de Júpiter em Caranguejo, que vai definir as características do ano em que Júpiter transita nesse signo. Júpiter forma um grande trígono (facilidade de acção) em signos de água com Neptuno (mar) e Saturno (limites, fronteiras). A intenção de Portugal de expandir os limites da sua zona de influência marítima está bem simbolizada por esta formação. Mas Saturno (obstáculos) está na casa dos nossos inimigos declarados (casa 7) o que reflecte a contestação apresentada por Espanha. Por outro lado, Júpiter (sorte) rege a casa 9 relacionada com a Convenção dos Direitos do Mar sobre a qual se apoiará as Nações Unidas para decidir o nosso pedido.




3. O próximo passo é através da Astrocartografia que analisa energias geograficamente. Aqui, Júpiter está no Fundo do Céu (ponto da carta referente à Pátria) nos Açores, zona onde a proposta de expansão da plataforma continental é maior!




Esta colocação de Júpiter é um aspecto positivo mas contrabalançado com Úrano no Ascendente (imagem do pais para exterior). Úrano é o planeta da mudança, da alteração do status quo o que nos seria favorável, mas também é o planeta das surpresas. A “certeza” da Ministra da Agricultura e do Mar demonstrada pela distribuição do mapa às escolas pode sofrer uma surpresa desagradável.

4. E por onde transitava Júpiter a 11 de Maio de 2009 relativamente à carta de Portugal? Na casa 4, a casa que é naturalmente regida por Caranguejo e reflecte a pátria. Expansão ou excesso de optimismo que é a outra característica de Júpiter?
5. Olhando para o futuro: Não sei quando as Nações Unidas tomam a decisão de aprovar ou rejeitar o nosso pedido, mas Júpiter faz uma conjunção por trânsito ao Neptuno da carta da república a 6 de Junho de 2014. Extensão marítima, ou grandiosa fantasia? 

Todas as energias planetárias têm uma expressão positiva ou uma expressão negativa, dependendo de como são utilizadas. Não sou política, por isso ignoro as manobras diplomáticas de bastidores, o que não me permite julgar a expressão e a verdadeira intenção deste pedido. Mas eu própria estou jupiterianamente optimista, talvez porque um mês depois da conjunção com Neptuno, Júpiter faz um sextil à Vénus da república, o que pode ser traduzido por uma oportunidade para enriquecer … Bem precisamos.

Luiza Azancot

25 fevereiro 2014

Duas Últimas


Em 2006 Bruce Springsteen lançou um álbum que reuniu músicas folk tradicionais popularizadas por Pete Seeger, uma forma (mais uma) de manifestar a sua admiração e apreço por alguém que foi, sem duvida, por altura dos anos sessenta do século passado, uma referência inspiradora para toda uma geração de músicos americanos.

Foi também um activista por causas que estavam à época muito em voga e que estão hoje mais ou menos consolidadas. Gosto mais das músicas do que das causas (pelo menos de algumas), mas isso não vem agora ao caso.

Pete Seeger deixou-nos no início deste ano, com perto de 95 anos de idade. Por isso aqui lhe presto também o meu singelo tributo.

Desse álbum, “We Shall Overcome, the Seeger Sessions”, retirei esta música que aprecio particularmente, esperando que me acompanhem nesta escolha.


fq

24 fevereiro 2014

Fórmula para o caos

Destaques do congresso do PSD:

Pedro Passos Coelho. Discursos proferidos no estilo habitual, racional e pouco emotivo, muito mais voltado para o país e menos para o partido. O facto de não ter sentido necessidade de falar directamente aos militantes (e barões) é um sinal inequívoco de que a unidade dentro do PSD é uma realidade.

Marcelo Rebelo de Sousa. Desempenhou o papel de entertainer da noite de Sábado. Como de costume, utilizou uma forma cativante, por vezes divertida, que prendeu os congressistas e motivou a maior ovação da noite. Fica, claramente, a ideia de que a questão presidencial está longe da resolução.

Nuno Morais Sarmento. Quanto mais os anos passam, mais consolidada fica ideia de que este é um dos melhores políticos do seu tempo. O discurso bem estruturado, abundante em substância programática e assertivo relativamente aos críticos internos que nunca expõem as discordâncias nos locais indicados.

Luís Filipe Menezes. Foi, a todos os níveis, lamentável. No fundo, apenas se deslocou ao Coliseu para explanar todo oressabiamento e vitimização que já se lhe conhecia.

Pedro Castelo Branco

23 fevereiro 2014

VII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO Mt 5, 38-48

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Ouvistes que foi dito aos antigos:
‘Olho por olho e dente por dente’.
Eu, porém, digo-vos:
Não resistais ao homem mau.
Mas se alguém te bater na face direita,
oferece-lhe também a esquerda.
Se alguém quiser levar-te ao tribunal,
para ficar com a tua túnica,
deixa-lhe também o manto.
Se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha,
acompanha-o durante duas.
Dá a quem te pedir
e não voltes as costas a quem te pede emprestado.
Ouvistes que foi dito:
‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’.
Eu, porém, digo-vos:
Amai os vossos inimigos
e orai por aqueles que vos perseguem,
para serdes filhos do vosso Pai que está nos Céus;
pois Ele faz nascer o sol sobre bons e maus
e chover sobre justos e injustos.
Se amardes aqueles que vos amam, que recompensa tereis?
Não fazem a mesma coisa os publicanos?
E se saudardes apenas os vossos irmãos,
que fazeis de extraordinário?
Não o fazem também os pagãos?
Portanto, sede perfeitos,
como o vosso Pai celeste é perfeito».

22 fevereiro 2014

Pensamento Impensados

Armazém de retém
Sempre quisera ser coleccionador, mas nunca passara de um ajuntador de coisas. Conseguira meter, entre dois vidros, uma dor de cotovelo; numa caixa de ferro (a cause des mouches) tinha três cabelos de Sansão; de dois pesos e duas medidas conseguira comprar um dos pesos; na garagem, rodeado de extintores, tinha o carro de fogo onde Elias subiu aos céus; numa gaiola tinha uma pena das asas de Ícaro; tinha uma lasca da pedra filosofal; ouvira falar em tim tim por tim tim e conseguira um tim; tinha a folha de figueira que tapara as "partes" de Adão; mas a peça de que mais se orgulhava era uma ferradura do cavalo de Tróia.
 
Guarda pretoriana
Ainda gostava de ver uma passagem de Aníbal sem guarda.
 
Falhas
As pessoas com memória fraca devem usar uma agenda; o mais natural é esquecerem~se de consultar a agenda.
 
Homem suite homem
A grande maioria das pessoas é de fabrico caseiro.
 
Levanta-te e anda
A morte é irreversível; para Lázaro não foi.
 
Crise
A Segurança Social fechou creches; é caso para dizer creche e desaparece.

SdB (I)

21 fevereiro 2014

Colar de Pérolas (10)




Lá no Texas, ou lá o que é, há um rapaz que anda de "skate". Aparece e desaparece, volta-e-meia. Quando está na fase do aparece, traz sempre com ele novidades. No caso dele, chamam-se canções. São todas quase perfeitas, falsamente simples, como se tivesse bebido o cancioneiro "folk-rock" americano. Uns, ao pequeno-almoço, fritam ovos de forma acintosamente imaculada, pelo menos para um europeu médio. Outros, ao final do dia, vão bebericar uma cerveja com a namorada, com aquela displicência de quem sabe que o génio não o deixou mal, durante o dia acabado de findar. Outra vez, uma e outra vez. A vida não é justa, rais'parta.

gi.

20 fevereiro 2014

Dos processos químicos internos

Storm, 9.02.14 (fotografia de JMAC, o homem de Azeitão)


Há duas semanas escrevi neste estabelecimento sobre detalhes, tendo referido os conceitos de studium e punctum desenvolvidos por Roland Barthes (in A Câmara Clara). 3ªfeira, ao tomar a decisão editorial de postar um Largo da Boa-Hora, embateu-me na testa aquele texto específico, aqui publicado há mais de cinco anos. Ontem, na minha ronda habitual de leituras matutinas, aprendi o conceito de "bem relacional": tipo de bens nos quais é a relação entre as pessoas que constitui o bem. Num repente que nada tem de lógico, mas de emocional, quis acreditar que estas três referências estavam interligadas, isto é, havia um alinhamento cósmico, uma espécie de fio invisível que tecia uma urdidura temática que só eu via.

Foquemo-nos. Aquilo que numa sala, numa pessoa, num quadro, num verso, num jantar ou num livro nos prende uma atenção instantânea é, estou em crer, involuntário. Depende de quem somos e da importância que damos às coisas; depende dos nossos gostos, ou mesmo da nossa genética. Mas é involuntário no sentido de não ser fruto de um acto deliberado, consciente e pensado. Olho para um grupo de amigos num restaurante e fixo o pormenor x, enquanto alguém ao meu lado atenta no pormenor y. A incógnita depende de quê? Do que é imediatista dentro de nós, mesmo que percebamos, à posteriori, a verdadeira e inquestionável importância do pormenor z.

O apego pelo detalhe é uma faca de dois gumes. Em mim  - como em muitos de nós, estou certo - vivem o deus e o diabo que agarram os detalhes pela mão ou pelo pescoço. É por isso que numa sala bonita, com rembrandts e pratas, me salta sempre à vista uma nódoa quase imperceptível ou o desalinhamento de dois bibelots; numas vezes vejo desacerto e falta de atenção, noutras vislumbro um charme discreto ou uma indiferença elegante. Mas nem sempre vejo os quadros. Depende de quê? De muitos factores, e por vezes de processos químicos internos que dificilmente saberei explicar.

Entramos num restaurante, numa pastelaria ou num estabelecimento que vende retrós. Assistimos a um concerto de música clássica ou a um programa de televisão que paga para as pessoas rirem. Passamos num quiosque para comprar uma revista ou sentamo-nos numa esplanada ao fim do dia. O que vemos e a que damos atenção? À qualidade do serviço, ao preço, à perfeição da execução, ao encanto da obra ou ao nível de entretenimento. Acontece-me não ouvir a peça musical, não prestar atenção ao jornalista, não querer saber do pôr do sol. Fixo a curva das costas da violinista, detenho-me no nariz da senhora que bate palmas na primeira fila dos estúdios, lembro a aliança do empregado que me traz uma cerveja gelada. A minha atenção desvia-se para a secundariedade do cenário, porque o meu punctum é aquele.

O que faço com este desvio da atenção? Nada de muito relevante para os outros. Mas acontece-me imaginar histórias aos personagens subalternos, adivinhar-lhes pequenos dramas e alegrias, rotinas desinteressantes, fragilidades emocionais, necessidades financeiras. Talvez, imperceptivelmente, lhes dê a dimensão humana que de facto têm e, nesse sentido, desvalorizo a cerveja que não tinha espuma, o jornalista que grita histericamente ou a violinista que esteve menos bem. Entre nós estabelece-se uma ligação que só existe dentro de mim, pelo que a bebida, o talk-show ou o concerto adquirem o estatuto de bem relacional. E com isso, diz-me a ingenuidade, afastámo-nos um micrómetro da indiferença. Mesmo que seja devido a um processo químico interno que dificilmente saberei explicar. 

JdB  

19 fevereiro 2014

Largo da Boa-Hora*

A caminho do meu banco, pela Rua Augusta, pela Rua do Ouro, cruzei-me com muitos que, como eu, cumpriam o seu dia nesta etapa da hora de almoço.
Ruas aquelas, majestosas, ricas de oportunidades e diversidades, plenas de gente, todavia ingloriamente calcorreadas em passos apressados por semblantes rígidos, em alheamento, indiferença, todos aparentando estarem a cumprir uma qualquer missão marcial.
Desse encontro, duas impressões me marcaram - uma provinda do colectivo e a outra dos indivíduos.
Do colectivo, impressiona-me que a concertação de tanta gente, tanto movimento, tanto acontecer gere todavia um silêncio dominante que se entranha imediatamente, que se percebe como coisa bizarra, que não devia suceder mas sucede. Espanta, assusta e entristece. Era suposto acontecer comunidade, mas não acontece, tão só ajuntamento, coincidência de estada, de mudos, de silenciosos, de afastados, de avessos ou indiferentes uns aos outros.
Feche-se o semáforo, fique o trânsito suspenso e não ouviremos nada, nenhum som da onda humana em movimento, nem um burburinho.
Entrar nestas rotas de movimento não é ser mais uma gota de água num rio vivo, fervilhante, que corre com turbulência e efervescência; entrar, é ser gota de água que escorre solitariamente pela vidraça em dia de chuva.
Dos indivíduos impressiona-me a atitude, o olhar, o fácies daqueles por quem vou passando.
Reina a invisibilidade, são cruzamentos entre névoas, entre nadas que se intersectam por segundos, num acaso inconsequente.
Em cada passagem pelo outro, os olhares, os gestos, os movimentos, transmitem a obstinada mensagem: ignoro-te, prescindo de ti.
Não há olhares que se fixem em partilha, por segundos, de condição humana; não há sorrisos que se formem e sejam protestos de simpatia, de solidariedade; não há variações de passo, de posição, de movimento, que confirmem o reconhecimento do seu semelhante, do seu igual, que o procurem adivinhar e ler, ainda que pela simples curiosidade e interesse sobre o como vamos
Não os vejo a passear, mas tão só a passar. Cumprem-se itinerários de e em isolamento, e não percursos de divagação, distracção, revelação de presença, desfrute do outros, busca de comunicação, de interacção com o mundo envolvente.
Não se iludam, não se trata de pressa, de urgência no circular. A pressa não é a causa, mas sim o efeito, o efeito do desgosto do caminho. A indiferença pelo que vai passando é que estuga a passada e mantém o olhar fixo no chão, no espaço do passo seguinte.
Porque será assim? (é certo que não cuido da espécie dos arrogantes e outras derivas)
Não sei, mas temo que seja pela desistência do próximo, descrença que naquele desconhecido com quem se cruza possa haver uma dádiva e uma recíproca necessidade de afecto que alimente ou restaure a alegria do momento que passa.
Temo que cada um se esgote em si mesmo, desacreditando no outro, desacreditando que mesmo um desconhecido pode, numa simples e inocente simpatia, sem passado nem futuro, ajudar no presente, fazendo-nos sentir notados, vivos, importantes, seres que contam para os outros, e para quem os outros contam.
Em reciprocidade ou retaliação, se preferirem, recusa-se sentir os outros, dar-lhes reparo, simpatizar com eles, gerar contentamento pelo simples ânimo de os fazer sentir que se lhes quer dar a nossa atenção, o nosso olhar, o nosso sorriso.
“Ver e ser visto” é indispensável para não ser trucidado pelo comboio que vai passar, mas é também condição insuprível para não sermos esmagados pela solidão existencial que é igualmente mortífera.
Suspeito pois que proliferam e dominam os caminhantes desiludidos, com tamanha desilusão que aligeiraram a bagagem, deixando a alma guardada em algum lugar, como inerte inútil que não importa carregar na jornada.
Desequipados da alma, são espectros em movimento e não seres humanos em relação e comunicação.
Também sinto que para muitos, demasiados, se adensa e acumula o cansaço deste seu viver, o qual, insidiosamente, como larva de insecto, vai construindo o opaco casulo que aprisiona, paralisa e torna as suas vítimas em cegos, surdos e mudos sociais. Autistas da humanidade.
Restaurar a humanidade na Rua do Ouro, ou em qualquer outra, é o que proponho.
Não sou nem demasiado lírico nem demasiado ingénuo para propor que se retome a saudação, a palavra espontânea, os bons dias, a companhia. Nada disso.
Busco que cada um, a partir do humilde reconhecimento e interiorização da sua própria fragilidade e dependência do outro, acredite que se tomar a iniciativa de dar expressão humana a si próprio, de transparecer os seus sentimentos, de deixar fluir o seu ânimo, receberá do outro fraternidade e solidariedade, expressas na mágica sinalética da comunicação humana.
É imensa a capacidade que o aparentemente pouco pode fazer sobre o muito, quando falamos de sentimentos e estados de alma. Nunca se despreze o pouco, quer quando se dá, quer quando se recebe.
Por mim, levanto-me deste banco e começo a caminhar, determinado a dar e pedir um sinal de fraternidade àquele que passar e para o qual vou olhar com vontade de o ver e de que ele me veja realmente.
Acredito, e por isso talvez um dia volte a haver burburinho na Rua do Ouro.

ATM

(* publicado neste estabelecimento no dia 19 de Novembro de 2008)

18 fevereiro 2014

Duas Últimas

Travei conhecimento com o António dos Santos há muitos anos - muitos, mesmo - embora nunca o tivesse visto. Havia lá em casa dois ou três discos de 45 rpm (ou talvez fosse apenas um) com interpretações dele. Ouvi, voltei a ouvir - e fiquei a gostar.

Se eu admito que não se goste de fado - porque é deprimente, dá neura, o que quiserem - ainda mais admito que não se goste do António dos Santos, que parece tocar sempre com a mesma toada, a mesma batida na viola, a mesma tristeza na voz. Visto de longe parece uma sopa da Bimby - tendencialmente sabem todas ao mesmo, qualquer que seja o mix de legumes atirado para a cuba.

Deixo-vos ainda com Marta Pereira da Costa, aqui postada uma vez. É uma rapariga bonita e, para além disso, é a primeira mulher a tocar profissionalmente a guitarra portuguesa. Não opino sobre a qualidade dela, porque não sei, e porque desconheço se a guitarra não é instrumento demasiadamente violento para uma mulher. Mas enfim, foi a isto que ela se atirou. É provável que vá vê-la e ouvi-la um destes dias no auditório da Boa Nova, onde se fará acompanhar por outros músicos.

Ainda que correndo o risco de ser um post pouco popular (pelo António dos Santos), do qual apetece fugir, aqui ficam dois artistas portugueses. Oiçam, apreciem ou indignem-se. Se assim for voltem cá, que haverá sempre quem faça melhor do que eu...

JdB




17 fevereiro 2014

Vai um gin do Peter’s?

Para hoje, vai um tema difícil. Daqueles que, quando menos se espera, invadem o nosso presente. Nada de surreal. Antes, bem concreto ao longo da história, por muito que se ignore uma realidade tão forte e marcante como a morte. Arrisco o tema, porque mesmo a morte pode ter uma perspectiva mais luminosa, quando alguém parte em paz. No caso mais recente que testemunhei, ainda teve o mérito acrescido de ter “apenas” 31 anos. Aquela paz parece ter aliviado um pouco o mistério doloroso da morte, a colidir descaradamente com um dos maiores apelos do coração humano: a vida. Claro que deixou uma saudade imensa. Mas quando se parte plenamente conciliado com a vida, sentimos que se estará mais preparado para sair do tempo e mergulhar na eternidade. De certo modo, intuímos aquilo que Saramago verbalizou assim: «Fugir da morte pode tornar-se num modo de fugir da vida.» No fundo, embora pareça contraditório, vida e morte estão mais entrelaçadas e são mais convergentes do que é comum admitir-se.

Naturalmente que o desafio continua a ser colossal para quem fica, impondo-se-nos uma nova distância física e uma possibilidade de proximidade espiritual, que nos são desconfortabilíssimas. Até pela estranheza.

Vem isto a propósito de uma catadupa de partidas recentes, algumas bem duras, várias de gente mais nova, repentinas, a deixarem vazios que não sabemos preencher. Em concreto, a mais recente, revelou um lado positivo (apesar de tudo), que poderá ajudar-nos a reconciliar com uma das horas mais difíceis da humanidade.  

Assim aconteceu, na madrugada da Segunda passada, quando um rapaz de 31 anos já não acordou para viver aquele dia invernoso, de céu carregado e rajadas de vento contínuas. Curiosamente, o choque da notícia ficou algo atenuado, ou melhor, impregnado de uma onda de bondade, que era a imagem de marca do Luís. Como se tivesse demorado a sua partida, para nos preparar (ele estava pronto!) para o adeus. Parecerá inacreditável a quem não tenha vivido uma experiência semelhante, pois situa-se e situa-nos numa esfera bem diferente da materialidade visível, que marca o nosso dia-a-dia. O testemunho de confiança de tantos, na sua família, também terá acentuado a nota de paz face àquela morte súbita, que arrasta sempre uma dor gigantesca. 

Numa das Igrejas do Chiado, onde uma multidão – sobretudo de miúdos –  incrivelmente serena veio rezar em redor, por e com o Luís (bem sei como é esquisito, mas foi palpável), 3 dias a fio, transbordava para a rua, em enorme desconforto, sob a chuva irritante e ininterrupta. Era inexplicável o silêncio manso e, diria mesmo, carinhoso que nos envolveu. Longas horas que puderam ser benignas, apesar da saudade. Por isso, valerá a pena partilhar uns traços mínimos do perfil deste pequeno-grande sábio, com que tantos tiveram a sorte de se cruzar.


Animadíssimo por natureza e com óptima voz, era o protótipo do compincha, adorando cantar com os amigos. Percebe-se que o gosto pela polifonia contagiou todos os campos da sua vida:



Escreveu a mãe dele(1), há duas décadas, antecipando o que aqui sentimos: que o Luís foi educado para a bondade, tendo-a interiorizado em pleno e vivido com especial mansidão, numa mistura muito feliz. Talvez isso o tenha tornado inesquecível:

«(…) quando penso no que quero para eles (meus filhos), o que quero que sejam e consigam na vida, mais me convenço de que é esta a coisa tão simples, tão metafísica e tão-sem-graça, que é… que sejam bons. É uma virtude chata, sem graça, sem heroísmo, sem rasgos geniais, sem primeiros prémios, sem glória… mas apesar de tudo, para que ‘o melhor do mundo sejam as crianças’ penso que é para a bondade que elas têm de ser educadas

Escreveu, em Novembro de 2012, o próprio, com a fé simples e bem disposta que o caracterizava: «Durante muito tempo esperei pelos sinais do Senhor para lhe dar o meu sim. Estava totalmente errado! Do sim que digo a Deus diariamente é que os sinais se começam a tornar perceptíveis, visíveis no dia-a-dia. Mais do que nunca, estou certo que ‘Aquele que começou em mim tão boa obra há-de levá-la a bom termo até ao dia de Cristo Jesus’» (Nov.2012)

Bem se aplica ao Luís um pensamento lindo de Saramago: «A vida é breve, mas cabe nela muito mais do que somos capazes de viver

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
___________________________

(1)  Versão integral do artigo, publicado na revista PAIS & FILHOS, no final dos anos oitenta. O Luís era um dos gémeos referidos no texto:



16 fevereiro 2014

VI Domingo do Tempo Comum

@ Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas;
não vim revogar, mas completar.
Em verdade vos digo:
Antes que passem o céu e a terra,
não passará da Lei a mais pequena letra
ou o mais pequeno sinal,
sem que tudo se cumpra.
Portanto, se alguém transgredir um só destes mandamentos,
por mais pequenos que sejam,
e ensinar assim aos homens,
será o menor no reino dos Céus.
Mas aquele que os praticar e ensinar
será grande no reino dos Céus.
Porque Eu vos digo:
Se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus,
não entrareis no reino dos Céus.
Ouvistes que foi dito aos antigos:
‘Não matarás; quem matar será submetido a julgamento’.
Eu, porém, digo-vos:
Todo aquele que se irar contra o seu irmão
será submetido a julgamento.
Quem chamar imbecil a seu irmão
será submetido ao Sinédrio,
e quem lhe chamar louco
será submetido à geena de fogo.
Portanto, se fores apresentar a tua oferta sobre o altar
e ali te recordares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti,
deixa lá a tua oferta diante do altar,
vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão
e vem depois apresentar a tua oferta.
Reconcilia-te com o teu adversário,
enquanto vais com ele a caminho,
não seja caso que te entregue ao juiz,
o juiz ao guarda, e sejas metido na prisão.
Em verdade te digo:
Não sairás de lá, enquanto não pagares o último centavo.
Ouvistes que foi dito: ‘Não cometerás adultério’.
Eu, porém, digo-vos:
Todo aquele que olhar para uma mulher desejando-a,
já cometeu adultério com ela no seu coração.
Se o teu olho é para ti ocasião de pecado,
arranca-o e lança-o para longe de ti,
pois é melhor perder-se um dos teus membros
do que todo o corpo ser lançado na geena.
E se a tua mão direita é para ti ocasião de pecado,
corta-a e lança-a para longe de ti,
porque é melhor que se perca um só dos teus membros,
do que todo o corpo ser lançado na geena.
Também foi dito:
‘Quem repudiar sua mulher dê-lhe certidão de repúdio’.
Eu, porém, digo-vos.
Todo aquele que repudiar sua mulher,
salvo em caso de união ilegal,
fá-la cometer adultério.
Ouvistes ainda que foi dito aos antigos:
‘Não faltarás ao que tiveres jurado,
mas cumprirás os teus juramentos para com o Senhor’.
Eu, porém, digo-vos que não jureis em caso algum:
nem pelo Céu, que é o trono de Deus;
nem pela terra, que é o escabelo dos seus pés;
nem por Jerusalém, que é a cidade do grande Rei.
Também não jures pela tua cabeça,
porque não podes fazer branco ou preto um só cabelo.
A vossa linguagem deve ser: ‘Sim, sim; não, não’.
O que passa disto vem do Maligno».



***

O Segredo do olhar cristão

É-nos muito difícil olhar para os outros sem sentimentos disfarçados, com um coração realmente convertido; com toda a benevolência e com toda a pureza com que Deus olha para todos… Deus não desiste de ninguém. Se formos honestos, reconheceremos que só podemos estar diante de Deus como estava o publicano. A nossa oração só pode ser esta: “Senhor, tem piedade de mim, que sou um pobre pecador; refaz-me a partir”. Enquanto não percebermos isto, não nos converteremos e não entenderemos tudo o que a religião de Cristo nos oferece!
Pedro, uma vez, perguntou a Jesus: “Senhor, assim quem é que se pode salvar?”. Jesus respondeu “Aos homens é impossível, mas a Deus nada é impossível”.
Às vezes, parece que até desistimos de ser bons; vamos fazendo o possível para não sermos maus de todo, mas não chega! Se nós realmente que remos Deus, se queremos a verdade, a bondade e a beleza absolutas; se queremos a pureza total, a limpidez mais profunda, não devemos desistir de ser bons; não nos devemos habituar a viver em função do “por fora”, mas sim em função do “por dentro”, inteiramente. Para isso, precisamos de pedir a Deus, que é a fonte de todo o bem, que nos faça bons.
É preciso acertarmos o nosso coração com o coração de Deus! É isso a conversão.


(D. Manuel Clemente (2013), O Evangelho e a vida. Conversas na rádio no dia do Senhor. Cascais: Lucerna, 163-164)

15 fevereiro 2014

Pensamentos impensados

Vénus de Milo
Segundo a Wikipedia, a história da descoberta da Vénus não é clara; por mim, estou em crer que a Vénus morreu afogada quando tentava banhar-se nas cálidas águas do Mar Egeu; sem braços e sem pernas, o que esperava?

Vénus não podia pôr a mão na consciência.

Vénus ficou sem mãos quando quis jogar ao mão morta, mão morta, vai bater aquela porta.

Vénus não pode dar 2 dedos de conversa.

A frase tem pano para mangas não se aplica a Vénus.

Uma cigana pateta disse a Vénus: quer que lhe leia a sina?

O termo "fora de mão" será alguma piada a Vénus? 



Diálogo com uma amiga:
- Vénus, dá aqui uma ajuda.
- Não posso, nem tenho mãos a medir.

Vénus pede a uma amiga: "dá-me esse pastel de bacalhau", ao que a amiga responde: "não sejas preguiçosa, está mesmo à mão!"

Um cobarde (só podia ser) desafiou Vénus para um mano a mano.

Vénus não podia chegar a certas coisas mesmo que estivessem à mão de semear.

Vénus, quando queria abraçar, passava uma procuração.

A nossa heroína falava pelos cotovelos; mandaram-na calar e ficou sem braços.

Para terminar, uma frase de Vénus: vão-se os anéis, vão-se os dedos, vão-se os braços mas fiquem os ombros.

SdB (I)

14 fevereiro 2014

Crónicas de um mestrando tardio

Recomecei esta semana o mestrado em teoria da Literatura a que me atirei na Faculdade de Letras.  2ªfeira era dia de Santo Agostinho que, a par de Fernando Pessoa, serão os dois seminários que seguirei até ao Verão. Sobre o segundo falarei noutro dia.

Atiro-me a este seminário com gosto. Quero saber mais sobre o santo e doutor da igreja, quero aprender a lê-lo. Não sairei defraudado, pese embora a minha própria capacidade intelectual, seguramente limitada.

Falemos então da bibliografia sugerida (escrita da forma ditada) para estas aulas sobre o bispo de Hipona:

- Confissões (recomendada leitura integral)
- De Doctrina Christiana libri IV
- Enarraciones in Psalmos
- Soliloquia
- Comentário ao evangelho de S. João
- Homilias e Epístolas
- Queda da Cidade de Roma
- A Cidade de Deus (são vários volumes, recomendada leitura integral)
- De Trinitate 
- Santo Agostinho [Teixeira de Pascoaes]

A primeira aula foi excelente, (quase) toda sobre a biografia de Santo Agostinho, imprescindível para se perceber o que lhe ia na cabeça e na alma, quais as fases por que ele passou e que tanto conformaram o seu pensamento e, consequentemente, os seus escritos. 

Terminámos em beleza, lendo e traduzindo o texto abaixo. Percebi pouco, que o meu latim nunca foi estudado, é apenas motivo de interesse. Mas faz sentido lê-lo alto, perceber o que é retórica, escutar a musicalidade da oração, o jogo de palavras (principalmente até meio do primeiro parágrafo). Um dia tentarei postar aqui a tradução.



JdB 

13 fevereiro 2014

Colar de pérolas (9)



Na pequena sala de concertos de bairro, habituara-se a encostar-se à parede dos fundos, de cigarro meio apagado na ponta dos dedos da mão esquerda e de copo meio vazio na mão direita. Vira já muita coisa, muitas caras, muitas bandas, muitas dores, muitas alegrias. Muita coisa. Mas essa noite foi diferente. No minúsculo palco à sua frente, alguém desfiava as contas de um rosário que ela conhecia bem demais. Como se um pássaro lhe tivesse roubado os suores nocturnos, os medos que mais ninguém testemunhava, e os tivesse conduzido até aquela mulher pronunciadamente pequenina que cantava daquela furiosa maneira. Ao pensar nisto, deu-se conta de como dela diziam exactamente o mesmo - que escrevia em fúria e sempre pronunciadamente em minúsculas.

gi.

12 fevereiro 2014

Diário de uma astróloga – [71] – 12 de Fevereiro 2014

Astrometeorologia


No dia em que estou a escrever este post está a chover a potes. Chamam a esta tempestade Ruth, a anterior foi baptizada Hercules, mas o sentimento da maioria dos portugueses é expresso por Mafalda:

Imagem retirada do Facebook do post de Inês Miranda

Antes de haver Instituto Meteorológico, Weather Channel, Windguru, etc., a previsão do tempo era feita pelos Almaques. Na minha secretária está um deles: “O Verdadeiro Almanaque Borda d’Água” publicado em Portugal desde 1929, que contém indicações para os agricultores, características dos signos do zodíaco, dias dos Santos, feiras populares e também previsões meteorológicas.   

Os Almaques têm a sua origem na astronomia babilónica, mas o mais antigo almanaque com o formato “moderno” foi elaborado em Toledo em 1088 pelo “cientista” árabe Ibn Zarqala contendo indicações das posições planetárias. Ao longo dos séculos foram sendo publicados almanaques para marinheiros, para agricultores e para astrólogos.

Nos Estados Unidos, no séc. XVIII, o Poor Richards Almanack era publicado pelo famoso Benjamin Franklin. A capa indica que continha informação sobre Lunações, Eclipses, Previsão do Tempo, Orbitas e Aspectos planetários, etc..



Voltando ao nosso Borda d’Água, na página de Fevereiro a previsão do tempo para a semana que começou  a 6 de Fevereiro é Vento e trovoadas. As previsões são feitas nos dias em que a Lua entra numa fase (Nova, Quarto Crescente, Lua Cheia, e Quarto Minguante).



Numa linguagem moderna chama-se astrometeorologia a esta parte do Almanaque que utiliza a astrologia para a previsão do tempo. Não sei como Ben Franklin fazia as suas previsões, nem como são feitas as do Borda d’Água, mas estudei astrometeorologia com uma colega americana, Carolyn Egan (www.weathersage.com) que tem dedicado a sua vida ao estudo da previsão climática por métodos astrológicos. 

Funciona assim: os planetas têm qualidades de temperatura, humidade e vento que se encaixam dentro do arquétipo do planeta. Algumas delas chegam-nos da astrologia medieval. Resumidamente, o Sol, a nossa fonte de energia, e Marte, o planeta vermelho são quentes e secos, a Lua fria e húmida, Mercúrio frio, seco e ventoso, Vénus, o planeta benéfico, reflecte uma temperatura moderada mas húmida, Júpiter, o outro planeta benéfico é quente e húmido e Saturno, o grande maléfico é considerado frio e seco mas associado com sistemas de baixa pressão, o que pode enganar pois os sistemas de baixa pressão trazem chuva. Úrano está ligado a situações de instabilidade, Neptuno ao nevoeiro e quedas de água e Plutão intensifica as energias dos planetas em que toca.

Os signos também têm as suas características e, com base nesta chave interpretativa, analisa-se primeiro a carta do solstício ou do equinócio precedentes. Esta carta dá-nos o quadro de fundo dessa estação.  Neste caso a estação que estamos a atravessar é vista através da carta do momento em que o sol entrou em Capricórnio, no dia 21 de Dezembro de 2013. Seguidamente elaboram-se as cartas de cada semana para o momento da lunação.

A interpretação das cartas inclui regências, aspectos, ângulos, é muito técnica e, na verdade, nunca fiquei uma verdadeira “expert”, mas as primeiras coisas que me saltaram aos olhos na carta do solstício foram:
a) Vénus não faz qualquer aspecto com os outros planetas pelo que o seu efeito moderador está limitadíssimo.
b)Úrano, o planeta das tempestades, está em aspecto com Marte e Plutão que ampliam a sua instabilidade.
Destes dois factos já temos ampla experiencia. E o que nos reserva a semana que vem?

A carta da próxima lunação é a da lua cheia de 14 de Fevereiro. Aqui Marte está numa posição importante, conjunto e regendo o ascendente mas com aspectos suaves e os dois benéficos, Vénus e Júpiter, estão em aspecto um com o outro. Esta carta não substitui a do solstício mas dá-nos razão para optimismo.

O Borda d’Água está de acordo e indica Bom Tempo para a semana que começa no dia de S. Valentim. Mas mesmo assim, em vista da carta do início do Inverno, convêm não esquecer o guarda-chuva em casa.

Luiza Azancot

Acerca de mim