Imaginemo-nos a deglutir uma cápsula mágica.
Não para que alguém que nos é externo e mais sabedor examine os órgãos de que
se constitui o nosso corpo – baço, fígado, apêndice, cólon, esófago – mas para
que nós próprios vislumbremos a imaterialidade do nosso físico: carácter, actos,
feitios, comportamentos.
(Interrompo
o parágrafo inicial para uma dúvida partilhada: a cápsula é mágica ou é
maldita? Procuramos ou fugimos?)
Imaginarmos a possibilidade desta fantasia da
técnica é ter a certeza de que veríamos a Luz e a Sombra – melhor, Deus e o
Diabo – a conviverem no mesmo espaço e no mesmo tempo, digladiando-se pela
nossa alma frente a uma mesa de poker
ou a um tabuleiro de xadrez.
(Revisitar
a letra do Spanish Train, de Chris de Burgh, é perceber esta menção.)
Qual o desenlace desta contenda entre as Trevas e a sua inversa? O desenlace é sempre incerto, porque incerta é a alma humana.
Qual o desenlace desta contenda entre as Trevas e a sua inversa? O desenlace é sempre incerto, porque incerta é a alma humana.
***
Ir à missa, rezar, entregar-se a uma espiritualidade possível ou reconfortante é (quase) tudo. É perceber a debilidade daquilo que nos forma, mas é também aforrar reforços para os momentos de maior necessidade: a fraqueza da fé, o confronto com tempos particularmente difíceis, a lembrança permanente do que é o bem e o mal. Ir à missa não é uma recompensa. Uma igreja não é uma espécie de olimpo onde residem os deuses da moral e dos bons costumes, nem é um senado onde só ingressam os virtuosos da pátria.
Ir à missa não é um prémio – é a procura de um
prémio. Apesar disto, que me parece ser de uma meridiana clareza e um
fortíssimo lugar-comum, subsiste a ideia pontual, porém reiterada, de que aos
fiéis se exige um comportamento irrepreensível, porque a coerência lhes é
imposta como a pulseira electrónica a um condenado. “Olha, olha, tantas missas
e depois é isto...”
Desconheço a motivação dos milhões de pessoas
que assistem à missa por esse mundo fora. Não conheço, sequer, a motivação daqueles
que frequentam a mesma missa que eu, muito embora conheça algumas vidas com que
me cruzo semanalmente. A minha imaginação lista todas as motivações: os que
cumprem uma rotina desconcentrada, os que vão como companhia absorta, os que estão
atentos e disponíveis para aprender, os que entendem já saber o suficiente,
surdos por convencimento.
Errar no dia a dia – o rancor, o orgulho, o mau
feitio, a inveja, a falta de caridade ou de atenção, o egoísmo, a ausência de
ética – atinge-nos a todos, sejamos crentes ou ateus, budistas ou muçulmanos. Afirmar
“olha, olha, tantas missas e depois é isto”, porque um praticante se portou menos
bem – ou mesmo mal... - numa determinada área da sua vida, não será muito
diferente da intolerância manifestada aos desportistas arredados do pódio:
“olha, olha, tantos treinos e depois é isto”.
Continuarei a ir à missa - e continuarei a falhar. Se a minha panóplia
de motivos contemplasse apenas um, teria a clareza que advém da ausência de
dúvidas: nada nem ninguém me desafiou tanto à santidade como a Igreja Católica,
com todos os seus defeitos, falhas, incoerências, vergonhas. Não vou à missa
porque sou, vou à missa para ser. E como não o consigo, repito todas as
semanas. Quem olhar para mim – ou para outros, infinitamente melhores do que eu
– e, face às minhas falhas, lhe ocorrer
a frase “olha, olha, tantas missas e depois é isto ...“ tem ferroada para o resto da
(minha) vida.
Dentro de mim – como dentro de muitos que me
lêem, estou certo – Deus e o Diabo travam uma luta constante num comboio que,
canta Chris de Burgh, runs between
Guadalquivir and old Seville. Ambos disputam a minha alma, ambos me apresentam os seus argumentos. Deus mostra-me o Amor, por vezes difícil, exigente; o Diabo mostra-me a sua inversa –
por vezes mais divertida, por vezes com uma ideia falsa de gozo imediato. Só me resta torcer pelo meu clube, dando-lhe trunfos para que o jogo seja mais manso...
Olha, olha...
JdB
O meu filho aos 15 anos era grande fan de musicas com historia e cantava esta com plenos pulmoes pela casa (entao em Providence). Brought back memories!
ResponderEliminarOn another note - amanha e' uma Lua cheia em Touro data em que os budistas celebram o festival de Wesak. Considero que e' uma boa ajuda ao jogo de Deus seguir os conselhos de Budha para este dia: reiterar a determinacao de levar uma vida nobre, desenvolver a mente, praticar a bondade e a gentileza e trazer paz e harmonia a' humanidade.
OBRIGADO!
ResponderEliminarHá neste texto uma frase que me assusta.
ResponderEliminar"Deus mostra-me o Amor, por vezes difícil, exigente; o Diabo mostra-me a sua inversa – por vezes mais divertida, por vezes com uma ideia falsa de gozo imediato"
Será que tudo o que é gozo e imediato se pode considerar como sugestão do diabo?
Não me parece que o Deus amor nos prive desses momentos, mas infelizmente o prazer e a satisfação dos nossos instintos e impulsos, são ainda muito "sentidos" como sugestões do diabo.