Póvoa e Meadas, fotografia de JMAC, o homem de Azeitão |
O mundo
não é mais do que o equilíbrio, temporariamente instável, de acções e reacções,
de forças contraditórias e opostas, sendo que tudo se anula para que a esfera
terrestre continue levemente achatada nos pólos, com partes desiguais de água e
terra. O grande desafio é acreditarmos que o mundo se traduz, numa escala
infinitamente mais pequena, naquilo que nós somos. Mesmo que não saibamos o
número de forças que se digladiam internamente, há quem creia que ele é em
número par, para que todas as nossas descompensações se ajustem. Há vidas
globalmente equilibradas mas feitas de desequilíbrios – humores, feitios,
opções, caminhos traçados. Há os excêntricos, os fora de centro, nos quais se
nota essa desarmonia. Qual a diferença entre uns e outros? Não o número de
forças que cada um contém dentro de si, mas o facto de serem em número impar ou
em número par.
Alfredo Macuti in Fragmentos
(não publicado)
***
O texto acima revela-nos uma premissa errada, ao afirmar que somos o
reflexo do mundo. O que falha na frase? O alinhamento das palavras, mais coisas
menos coisa. Em bom rigor, o mundo é o reflexo do nosso corpo e alma, é uma
consequência da humanidade e da sua generosidade, cobiça, sentimentos de ira ou
de pacificação, invejas e criatividades artísticas. Mas o mundo é também um
reflexo menos óbvio das nossas lutas interiores que geram terramotos, chuvas
ácidas, tempos amenos, outonos nostálgicos, vendavais ou nevões ou secas
persistentes. A Terra não é mais do que o Homem, na sua composição dual de
matéria e espírito, elevado a uma potência enorme. O mundo nas suas guerras,
meteorologias, influências clientelares, generosidades imensas, disparidades é, de facto, o melhor espelho do ser humano.
Na termodinâmica, a entropia está vulgarmente associada à quantidade de
ordem, desordem e/ou caos num sistema; quanto maior a entropia, maior a desordem. Diz a 2ª lei da
termodinâmica: a quantidade de entropia de
qualquer sistema isolado termodinamicamente tende a incrementar-se com o tempo,
até alcançar um valor máximo. A conclusão é imediata: a
entropia do universo tende para um máximo. Podemos criar ordem num certo ponto
do universo mas, para que o equilíbrio global se mantenha, a desordem surgirá
noutro ponto.
Recuperemos então o raciocínio inicial: o
mundo é o espelho do ser humano, pois cada um de nós é um universo: gente
gorda, elegante, de cabelos ruivos ou asa de corvo, com apetência para as matemáticas
ou para as artes, generosos ou violentos, com apreço pelas novelas ou pelo novo
cinema turco, por Eça ou Corin Tellado, pela companhia das índias ou naperons
bordados a três dimensões. E só existe entropia no mundo porque existe entropia
no nosso interior – vísceras e coração. O mundo, na sua imensidão geográfica,
meteorológica, humana, é uma cópia ampliada do camponês da tundra, do lorde
inglês, do rapaz maubere, da mulher casaque, do índio quechua. Todos eles, na
sua diversidade de línguas e hábitos, tendem para a entropia máxima.
Retomemos o excerto de Alfredo Macuti. O
nosso desafio individual é o de identificar os desequilíbrios internos. Mais do
que saber quais, é saber quantos. Mais do que reconhecer o gosto
desmesurado pelo jogo ou pelas substâncias nocivas, a facilidade do grito ou do
estalo, o excesso de dispêndio financeiro ou a sua inversa, cabe-nos o
exercício da contabilidade mais comezinha: qual o número daquilo que em nós é
excesso?
Não me havendo atirado nunca à estatística ou
análise mais detalhada destas coisas, arrisco uma certeza: todos os nossos desequilíbrios
são em número impar, pelo que volto a discordar do texto com que arranca esta
divagação. Se dizemos de nós próprios que somos excessivamente avaros e excessivamente
humildes e que, com esse deve-haver nos equilibramos, é porque estamos
desatentos e nos falta o discernimento sobre o terceiro. A seca na Bolívia não
se equilibra com a chuva persistente na Ucrânia, pela simples razão de que
houve um terramoto na Islândia que não foi equilibrado com algo de sentido
contrário no ponto inverso do mundo.
Estamos assim num permanente desequilíbrio –
como está o mundo, afinal. As forças que se digladiam dentro de nós são
imorredouras enquanto nós o formos também. Acompanham-nos na singeleza da nossa
vida diária, nas grandes opções que duram uma vida, na forma como olhamos para
os outros e lhes estendemos uma mão aberta ou um punho fechado. Por mais que
pensemos e desejemos, achando que um pensamento profundo afecta uma existência,
somos sempre um número impar em nós. Cabe-nos descortinar o único artifício gratuito,
eterno, inesgotável que torna tudo par. Já o encontrei, falta-me apenas tudo o
resto.
JdB
número ímpar ou número primo ?
ResponderEliminarA sua perspectiva parece-me demasiado «homocêntrica», João. Mas, se calhar, estamos a partir de pressupostos diferentes: é que, se falamos de constituição do mundo, julgo que somos nós o reflexo. Mas se falamos de compreensão do mundo, o reflexo é ele. Estarei a interpretá-lo bem?
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