16 setembro 2014

Das nostalgias persistentes

Quer dançar?

Fixei-a com um português suave sem filtro numa mão clandestina, uma cerveja tirada à pressão na outra, um coração palpitante de enervamento e uns olhos bailarinos que não se fixavam em nada, mas que a retinham apenas a ela - o cabelo curto, um sinal discreto junto a uma sobrancelha, uma ligeira assimetria da boca, uns dedos que revolviam um anel comprado na feira do artesanato, um fio de cabedal de onde pendia uma cruz que só era dolorosa nos adultos. Sorriu-me, e não estou certo de que tenha percebido que os olhos dançarinos são um desobediência infantil, duas esferas vítreas que revelam o que o sentimento não é, que mostram o que a alma não executa. De mim para ela era uma linha recta apenas, a certeza do caminho mais curto, batimento em uníssono, vislumbre do mesmo ponto na lonjura das férias. 

Sim, quero...

Pousei o cigarro e a cerveja e os olhos que não paravam, desobedientes. Uma mão na cintura, a outra quase nervosa, quase húmida, quase imóvel num ombro, num pescoço, numa nuca, num cabelo curto, num afago, numa eternidade de quatro minutos. Rosto encostado a cheirar perfumes de frança, uma agitação mínima como se à terra bastasse isso, ou como se à terra não fosse permitido mais do que isso para a salvação das almas, do amor adolescente, dos olhos irrequietos, da exaltação que vem do silêncio, das mãos dadas, das palavra sem jeito, da vitória sobre um outono indesejado que era uma placa levantada pelo destino a dizer fim do verão. 

Dançámos quietos como nunca mais ninguém dançaria, dizíamos nós dois, para quem a existência era um português suave sem filtro e um anel feito por mãos artistas, um sorriso envergonhado nuns olhos que não paravam. Apertámo-nos mansamente, tão mansamente que mais ninguém percebia, achávamos nós. Só que eles percebiam, riam comentários, adivinhavam tudo, tinham como certezas aquilo que nos nossos íntimos eram só aspirações, esperanças, um dueto acertado de dois corações descompassados.

No fim sorri-lhe e disse obrigado, como se fosse uma palavra-passe - o sorriso ou o agradecimento ou a dança, sei lá eu... - que me abriria a porta do paraíso cuja extensão eu desconhecia mas que sabia ser já ali, a cheirar a perfume e a cabelo curto, na imobilidade de um chão que me fugia dos pés. O paraíso ao alcance de uma mão que afagava umas costas onde tudo começava e acabava, uma nuca cujas curvas eram a geografia de um tempo eterno que os adultos, para quem a cruz pendurada no fio de cabedal era uma dor - ou um Amor, talvez - garantiam não voltar.  E por isso não lhes perguntávamos nada, nem lhes dizíamos nada, nem lhes contávamos nada. Não era por segredo, era apenas para podermos sobreviver.

JdB

    

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