09 março 2015

Vai um gin do Peter’s?

Além de se ter distinguido como um dos maiores estadistas do século XX, pelo seu contributo inequívoco para a vitória dos Aliados na Segunda Guerra, Churchill foi escritor, premiado com o Nobel (ref. no gin de 9.Set.2013), e ainda pintor. A sua paixão pelas artes plásticas será uma faceta menos conhecida, mas nada desprezível.

Intenso e workaholic como era, ninguém estranhou a sua fúria e perplexidade quando foi liminarmente demitido do Governo, na sequência do desastre na Batalha dos Dardanelles, na actual Turquia. Enfrentava o primeiro grande revés político da sua longa e atribulada carreira. Como panaceia, os amigos recomendaram-lhe que experimentasse pintar, por ser um passatempo ideal para descomprimir. À beira do desespero, resolveu mesmo deitar mão às aguarelas dos filhos a ver se conseguia relaxar. Gostou tanto do passatempo que, daí em diante, não havia folga que não passasse junto ao cavalete, a observar a paisagem e a transpô-la, à sua maneira, para a tela. Aos 40 anos descobria o seu hobby preferido, confirmando a curiosa coincidência de quase tudo aquilo em que se sobressaiu lhe ter acontecido muito tardiamente, na vida. Só fora Primeiro-Ministro aos 65 anos. 


Curiosamente, enquanto nas letras e na política a sua veia irónica era preponderante, na pintura Churchill mostrou-se sóbrio e até suave, comedido e afectuoso, bem nos antípodas do seu temperamento de figura pública, maximamente polémico e belicoso. A combatividade aguerrida do seu discurso verbal está totalmente ausente na pintura. Mal agarrava o pincel, Churchill parecia amansar, saboreando o cachimbo, ou melhor, o charuto da paz. Na tela, usa a cor com a frescura de uma criança que se encanta com tudo o que vê, com uma candura invulgar, ao mesmo tempo temperada pela lucidez (ou não fosse quem era!) e um olhar atento sobre a realidade. As suas composições são harmoniosas, decorativas e equilibradas. Por vezes, têm leves toques exóticos e um ou outro elemento de humor, como o friso de garrafas a incluir o seu whiskey de estimação, escocês – Johnny Walker Black Label. Mas nada de arrebatamentos nem estridência.

Título original «Bottlescape».

Com o pincel, Churchill transforma-se num cronista pacato e de bem com a vida, abstendo-se de experimentalismos e ousadias. Cultiva, antes, um estilo hiper clássico, que privilegia a estética e o registo próximo do que vê, sem fantasias nem marcas pessoais demasiado fortes.

As viagens fornecem-lhe um manancial de inspiração inesgotável, das familiares às políticas, daquelas que fizeram História. Percebe-se que a bagagem das tintas o acompanha para todo o lado, qual kit de sobrevivência psicológica. Ainda assim, parece que a única pintura realizada em plena guerra, foi a vista de Marraquexe, datada de 1943, logo após a Conferência de Casablanca. Nessa altura, o líder britânico convenceu o Presidente dos EUA a ir com ele até à cidade marroquina e apreciar a vista fantástica, a partir de uma torre, estrategicamente situada numa das extremidades da malha urbana. Mal o americano partiu, o inglês aplicou-se a pintar aquela vista, que depois ofereceu a Roosevelt.


Inacreditável pensar que cenas campestres e prosaicas eram os seus alvos de eleição, como o pátio de um convento, algures na Grã-Bretanha profunda. O denominador comum são as perspectivas pacíficas e de escala humana, dir-se-ia, aconchegantes: 



Aqui chegados, torna-se mais compreensível que o paraíso, para o agitadíssimo Winston, não fosse a natureza grandiosa e avassaladora, mas antes um espaço verde da Inglaterra rural, perdido no meio de um bosque viçoso e pacífico, onde nada de especial parece acontecer. Zero de adrenalina. Tudo aqui é discreto e expressão perfeita da temperança e da bonomia, apesar de ter sido pintado no alvor da Segunda Guerra, quando Hitler já incendiava a Europa, anexando os países vizinhos com panzers e a temível Luftwaffe, sob o olhar bem atento e preocupado de Churchill:

Título original: "View from Chartwell", terminado em 1938.
 Chartwell era o seu recanto favorite e tema recorrente nas telas, com
perspectivas do interior da casa, naturezas-mortas e vistas do exterior.
Comprara a propriedade, em Setembro de 1922 e ali montara o atelier    

Interior de uma das propriedades de família – o Palácio de Blenheim, dos duques de Marlborough – profusamente decorado em estilo barroco, datado do século XVIII:

As tapeçarias de Marlborough, no Blenheim Palace

Mesmo a nível náutico, não são as ondas indomáveis do Atlântico que o atraem, mas os riachos e as enseadas calmas que serpenteiam o campo inglês, salpicado de simples barcos a remos. Vemos ancoradouros remotos e modestos, em vez de marinas faustosas ou dos portos garbosos da Marinha britânica, que Winston conhecia como ninguém.

Uma das suas aguarelas mais conhecidas e populares data de 1933, em plena travessia do deserto, do ponto de vista político. Barquinhos de cores alegres e pueris flutuam num lago azul de águas paradas, num dia privilegiado de luz. Talvez aquela aberta de sol, luminosa e rara no clima sombrio das ilhas Britânicas, tenha encantado o estadista, que o tomou como «Estudo de barcos», ele que tinha um currículo ligado à Marinha, onde se cruzou com embarcações gigantescas, daquelas que asseguraram à sua pátria a primazia dos mares. Mas nada dessas vivências, que entusiasmaram o seu dia-a-dia profissional, chegaram à tela:  

O hobby preferido de Winston ainda teve o mérito de revelar um lado calmo, amistoso e sóbrio, que a parte visível da sua personalidade nunca fariam supor. Uma boa surpresa, que prova o mistério quase insondável que é cada pessoa, de quem conhecemos tão pouco, até mesmo, de nós próprios. Para não variar, Churchill é o exemplo acabado da riqueza multifacetada do ser humano, a paisagem mais surpreendente e maravilhosa do planeta, digo eu...

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)


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