06 abril 2015

Vai um gin do Peter’s?

«Se a felicidade não existe, então o que é a vida?» tornou-se no lema do encontro organizado pelo grupo universitário do Movimento Comunhão e Libertação, que decorreu no fim de Março, no CCB.  A pergunta foi escrita pelo poeta italiano Giacomo Leopardi(1) (1798–1837)  e enviada, por carta, ao seu amigo Jacopensen, sendo uma expressão viva e concreta de Esperança, que nos dá a capacidade de sermos maiores do que nós próprios, como cantava o príncipe da «Cinderela», na ópera de Rossini, que tem estado no S.Carlos.

Como é de Esperança que nos fala a passagem da Quaresma para a Páscoa, a tirada do poeta oferece uma pista especialmente adequada a esta época, até mesmo por ser Primavera e o ciclo da natureza recomeçar. Aliás, é o mesmo motivo por que a festa cristã da morte e ressurreição de Jesus foi fixada na estação onde a vida volta a despontar, festejando-se o primeiro Domingo primaveril de lua cheia.

Na apresentação do evento cultural do CL lia-se: «Só pode viver a experiência da felicidade o homem que reconhece a necessidade de que é feito o seu coração, cheio de desejo de infinito e plenitude. Isto é, o homem que age para viver para sempre. Aquele homem que, desde o instante em que toca o despertador e decide ir trabalhar, ou fica em casa a cuidar dos filhos, ou prossegue no seu projecto de investigação sem desistir, em todo o seu agir, em cada circunstância, rasga o horizonte e vê mais além e diz “é possível ser feliz”. São histórias de homens e mulheres que vivem na certeza da felicidade que queremos propor no Meeting Lisboa (…)».

Guiados pela poesia, poderá percorrer-se com mais rapidez e profundidade a transição da Quaresma para a Páscoa, i.e., a renovação por dentro de um tempo gasto e já sem vigor, para podermos recuperar o fôlego e investir melhor no presente. Sobre o que urge mudar em nós Sophia faz um diagnóstico lapidar, que seria redutor restringir à esfera política. Porque é no coração do homem que o bem e o mal se decidem:


  ESTE É O TEMPO
  Este é o tempo
  Da selva mais obscura
  Até o ar azul se tornou grades
  E a luz do sol se tornou impura
  Esta é a noite
  Deusa de chacais
  Pesada de amargura
  Este é o tempo em que os homens renunciam.
                                                 Sophia de Mello Breyner Andresen in Mar Novo (1958)

  AS PESSOAS SENSÍVEIS
  As pessoas sensíveis não são capazes
  De matar galinhas
  Porém são capazes
  De comer galinhas

  O dinheiro cheira a pobre e cheira
  À roupa do seu corpo
  Aquela roupa
  Que depois da chuva secou sobre o corpo
  Porque não tinham outra  (…)

  "Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
  Assim nos foi imposto
  E não:
  "Com o suor dos outros ganharás o pão"

  Ó vendilhões do templo
  Ó construtores
  Das grandes estátuas balofas e pesadas
  Ó cheios de devoção e de proveito
  Perdoai-lhes Senhor
  Porque eles sabem o que fazem
                                                                                                                           In «Livro Sexto»  (1962)

A denúncia, em poema, que a poeta (recusava-se ser poetisa) intitulou «PORQUE» exalta uma atitude de vida íntegra e corajosa, que se aplica a pouquíssimas pessoas, embora numa tenha pleno sentido e total ressonância. A mesma a quem Rembrandt quis dar o maior destaque, através da pintura, mostrando-a num ambiente íntimo que, gradualmente, percebemos ser sagrado e estar envolto em ternura, apesar da dor explícita. Não havia melhor forma de colocar o foco sobre um poder tão humilde, suave e indecifrável para os padrões pragmáticos do mundo, com dificuldade em vislumbrar para além de um corpo temporariamente entregue à morte:

Rembrandt, «Descida da Cruz», c.1651.
Na National Gallery of Art de Washington.



  PORQUE
  Porque os outros se mascaram mas tu não (…)
  Porque os outros têm medo mas tu não.
  Porque os outros são os túmulos caiados (…)
  Porque os outros se calam mas tu não. (…)
  Porque os outros são hábeis mas tu não.
  Porque os outros vão à sombra dos abrigos
  E tu vais de mãos dadas com os perigos.
  Porque os outros calculam mas tu não.
                                                          Sophia de Mello Breyner Andresen in «Mar Novo» (1958)
 

É muito sério o desafio que Sophia entendia estar no âmago da missão dos poetas, ao serviço da comunidade dos homens: «A poesia (…) pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. (…) A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida. (…) Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. (…) E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética

Mas o que buscamos afinal, dispondo-nos a melhorar? O que nos move? Até onde estamos disponíveis para crescer e abarcar todos?...  Com ecos das orações de S.Francisco de Assis, Sophia tornou muito concreto o Pai-Nosso, q.b. quaresmal:


  A paz sem vencedor e sem vencidos
  Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
  A paz sem vencedor e sem vencidos
  Que o tempo que nos deste seja um novo
  Recomeço de esperança e de justiça.
  Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

  A paz sem vencedor e sem vencidos

  Erguei o nosso ser à transparência
  Para podermos ler melhor a vida
  Para entendermos vosso mandamento
  Para que venha a nós o vosso reino
  Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

  A paz sem vencedor e sem vencidos

  Fazei Senhor que a paz seja de todos
  Dai-nos a paz que nasce da verdade
  Dai-nos a paz que nasce da justiça
  Dai-nos a paz chamada liberdade
  Dai-nos Senhor paz que vos pedimos

  A paz sem vencedor e sem vencidos



Neste tempo pascal, em que acabámos de lembrar a morte como uma Partida de quem vai antes de nós, e nem tanto de quem é levado definitivamente para longe de nós(2), volto a citar Sophia, por rasgar um horizonte fecundo e luminoso sobre a ausência mais misteriosa que a humanidade conhece: «quero, ao terminar (uma locução pública(3)), saudar os meus amigos ausentes (também em sentido pleno, post-mortem): porque não há nada que possa separar aqueles que estão reunidos por uma fé e por uma esperança
Creio ser das melhores formas de desejar a cada um Boas Festas Pascais.

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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 (1) Giacomo Taldegardo Francesco di Sales Saverio Pietro Leopardi (29.Jun.1798–14.Jun.1837) distinguiu-se como poeta, filósofo, ensaísta e filologista, em apenas 38 anos de vida. Foi no ambiente mais conservador dos Estados Papais, onde nasceu e viveu, que entrou em contacto com as ideias vanguardistas do Iluminismo. A qualidade da sua produção lírica converteram-no em figura cimeira do panorama literário e cultural da Europa, evidenciando uma criatividade literária repleta de reminiscências românticas. Também a profundidade da sua reflexão sobre a existência e a condição humanas foram marcantes para o pensamento filosófico ocidental. 
 (2)  Reparafraseando S.Ambrósio, o santo de Milão que teve o mérito de converter Sto.Agostinho, impressionado pela sua interpretação acutilante do Evangelho, com uma novidade que nunca ouvira, até então, ele que ensinava numa das melhores universidade do Norte de África, zona muito desenvolvida, à época. 
 (3) Conclusão do texto que leu a 11 de Julho de 1964, no almoço organizado pela Sociedade Portuguesa de Editores para a entrega do Grande Prémio de Poesia, pelo seu «Livro Sexto». 

1 comentário:


  1. Agradeço, este post, pela msg, pela estética, por me ter capturado.

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