14 abril 2016

Das aparências

Macbeth, estreia no Lafayette Theatre (Abril de 1936)


All the world’s a stage,
And all the men and women merely players

As You Like It (William Shakespeare, 1564 - 1616)

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Nos inúmeros cursos em segurança no trabalho que frequentei como formador ou como formando falava-se sempre nas aparências, dando exemplos concretos para explicar que nada do que parece pode, efectivamente, ser: os maus têm cara de mau? Os bons têm cara de bom? Seguidamente mostrávamos alguns retratos de pessoas completamente normais (o que quer que isso signifique): uma jovem loira com cara de namoradinha do liceu; um cavalheiro bem parecido que dava ares do nosso professor da faculdade; uma senhora de meia idade que poderia ser nossa tia, mais este e mais aquele... Um era serial killer, o outro tinha roubado milhões, outro ainda tinha raptado não sei quantas pessoas. No entanto, nenhum destes seres humanos tinha cara de facínora (o que quer que cara de signifique).

Que mérito tem o golfinho naquele seu sorriso de criança bem disposta? Nenhum. O golfinho tem cara de animal manso que, na realidade é. No outro lado da barricada, o tubarão, com aquela dentição afiada, feroz e abundante, tem cara de animal potencialmente cruel que, na realidade, é. E se o tubarão tivesse cara de golfinho? E se o golfinho, pronto a brincar connosco no oceano ou nas piscinas do zoo marine tivesse tal e qual o fácies do tubarão do filme do Spielberg? Entre um cão de raça Labrador e um cão de raça Pitbull há uma diferença grande de ferocidade: um come, dorme, acompanha-nos, deita-se à lareira e faz-nos companhia. O outro, num acesso de mau génio, pode matar-nos ou ferir-nos com gravidade. As caras revelam essa diferença de temperamento? E se a Lassie que nos encantou enquanto crianças se parecesse com um Rottweiler? Somos nós que nos auto-sugestionamos?

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Suponhamos agora que numa pequena terra de província alguém com um fetiche pelo cinema de acção queria fazer um pequeno 007. Era preciso escolher um James Bond e uma bond girl. Acontece que na vila em questão só há duas pessoas disponíveis: um rapaz gordo, baixo e sem pescoço, e uma rapariga com um problema de estrabismo forte. O agente dos serviços secretos de sua majestade deixa de ser um galã conquistador para ser um canastrão com figura de sapo; a bond girl já não tem uma sensualidade pecaminosa, mas uns olhos escuros voltados para dentro. Para quem nunca viu um 007, bond, james bond é protagonizado por uma barrica, talvez com acne.

No seu livro Wilhelm Meister, parece-me (apanhei esta ideia no ar, numa aula da semana passada), Goethe tem exactamente este raciocínio: se só há um actor coxo para representar o Hamlet, então o Hamlet é coxo. Isto é, o papel adapta-se ao actor, algo que parece inverter a prática habitual. O golfinho é manso porque tem cara de manso, não porque na criação do mundo tenha sido bafejado com essa característica. A bond girl é estrábica, não houve nenhum erro de casting.  

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Não sei o que faço com o pensamento que deu origem ao texto. Pareceu-me apenas uma ideia forte, numa 4ªf quase chuvosa. Façam o favor de ser felizes.

JdB  
   

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